Cadastro Positivo: mais segurança, menores juros no mercado de crédito e benefícios para todos os envolvidos

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O Cadastro Positivo é um banco de dados de informações de operações de crédito realizadas tanto por pessoas físicas quanto jurídicas, administrados pelos chamados bureaus de crédito, gerando uma nota a cada um: quanto menor o risco de inadimplência, melhor a nota atribuída.

Instituído pela Lei 12.414/11, atualmente exige que a pessoa ou empresa interessada procure um dos operadores para aderir ao sistema. Estima-se que somente 13 milhões de consumidores estejam inscritos, número considerado insuficiente para que se tenha uma imagem clara do cenário nacional.

Visando implementar o modelo existente, está em tramitação perante a Câmara dos Deputados o PLP 414/2017, que traz alterações substanciais tanto na Lei 12.414/11 quanto na Lei Complementar 105/01. Dentre elas, se destacam a inclusão automática de todos os consumidores ao Cadastro Positivo e a especificação de regras mais claras e objetivas para as instituições financeiras e os bureaus de crédito.

Após ter o texto-base votado, resta apenas a aprovação de algumas emendas para que as novas regras entrem em vigor. A votação, que chegou a ser pautada nos dias 22 e 23 de maio, não chegou a ser realizada em face do encerramento das sessões. A expectativa, contudo, é que nos próximos dias o procedimento legislativo se conclua, uma vez que o PLP 414/17 está submetido ao regime de tramitação de urgência e é tratado pelo Governo Federal como importante para a retomada do crescimento do país.

Segundo estimativa da Associação Nacional dos Bureaus de Crédito – ANBC, a medida, se aprovada nos termos em que proposta, tem o potencial de mudar a forma como se concede crédito no país, beneficiando a todos os consumidores, injetará na economia brasileira até R$ 1,1 trilhão.

Isso porque a atribuição de pontuação e a avaliação positiva permitiria a inclusão financeira de cerca de 22 milhões de pessoas, os chamados “falsos negativos”, que, muito embora honrem com todos os seus compromissos financeiros, não conseguem linhas de crédito por não possuírem renda comprovada.

A iniciativa do Cadastro Positivo, a exemplo dos países que implementaram modelos de Fair Credit, tende a mitigar o problema de seleção adversa e, com isso, otimizar o mercado de crédito e potencializar suas funções sociais e econômicas.

Mais que isso, há a real possibilidade de que as taxas de juros praticadas no mercado de crédito sejam substancialmente reduzidas em razão de dois motivos: a diminuição do spread bancário e o aumento da concorrência no setor.

O spread bancário é a diferença entre o custo do dinheiro para o banco (o quanto ele paga ao tomar um empréstimo) e o quanto ele cobra para o consumidor na operação de crédito. Essa diferença se justifica na medida em que a instituição financeira precisa, além de captar recursos, arcar com impostos, despesas administrativas e de ter lucro, precisa suportar o custo do risco, qual seja, a inadimplência, que é o item mais representativo na composição do spread, segundo dados do Banco Central.

Neste contexto, a ampliação do Cadastro Positivo trará benefícios a todos os envolvidos, na medida em que permitirá, quando da análise de risco do crédito pretendido, uma leitura individualizada, resultando em spreads maiores para quem apresente tendência à inadimplência e menores para aqueles que regularmente cumprem com as obrigações financeiras assumidas.

Nada obstante, as técnicas de compartilhamento de dados estabelecidas pelo citado projeto de lei possibilitarão que as instituições financeiras e as que serão a elas equiparadas, como as fintechs, tenham maior precisão na análise de risco do crédito e ofereçam condições diferenciadas e cada vez mais baratas, em razão do aumento na concorrência.

Há, contudo, pontos de atenção a serem observados pelos bureaus de crédito e a instituições financeiras, especialmente em relação aos dados cadastrados nos sistemas e às mudanças propostas pelo PLP 414/2017.

A primeira delas é em relação à adesão ao Cadastro Positivo. Enquanto atualmente somente o acesso aos dados negativos ocorre sem a necessidade de autorização do consumidor, com a nova regra não se exigirá anuência para inclusão dos CPF’s e CNPJ’s também no Cadastro Positivo. O cidadão ou empresa poderá, entretanto, solicitar o cancelamento do seu cadastro a qualquer momento. A solicitação deverá ser atendida em até dois dias úteis.

Outra mudança significativa é que, ao contrário do que ocorre hoje, com a aprovação do PLP 414/2017 os bureaus de crédito somente estarão autorizados a fornecer uma nota de crédito. Para repasse de informações detalhadas, o consumidor deverá autorizar expressamente.

Além disso, atualmente não há exigência de que os bureaus mantenham registro de atividades junto ao Banco Central, cenário que será alterado, uma vez que estes terão que demonstrar que têm sistemas seguros de gerenciamento de dados antes de operar com o Cadastro Positivo.

A divulgação de informações em desacordo com a legislação estará sujeita a penalidades severas da Lei do Sigilo Bancário e ao regime de responsabilidade do Código de Defesa do Consumidor.

Depois de publicado, o texto entrará em vigor em 90 dias. Antes que esse prazo acabe, o Banco Central deverá publicar regulamentação complementar que trará algumas exigências específicas aos gestores desses dados – tanto os atuais bureaus de crédito quanto os novos que devem surgir a partir da medida.


O desinteresse do Ministério Público do Trabalho em ação declaratória de quitação de verbas devidas em virtude de extinção parcial de sociedade

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É sabido que tanto o Código Civil (artigo 966, parágrafo único[1]) como o Regulamento Geral do Estatuto da Advocacia e da OAB[2], aprovado pelo Conselho Federal em 06 de novembro de 1994, e os Provimentos n.º 112[3] e 169[4] da referida entidade, de 10 de setembro de 2006 e de 02 de dezembro de 2015, permitem a formação de sociedade civil de cunho intelectual em que os sócios, todos advogados, se reúnem para a prestação de serviços intelectuais na área do Direito.

Desta forma, nestas sociedades, por não haver entre os sócios e o escritório de advocacia nenhuma relação trabalhista, qualquer cizânia entre os mesmos deveria ser dirimida perante a Justiça Comum, por se tratar de causa exclusivamente societária e/ou indenizatória. É que se o advogado opta em fazer parte de uma sociedade na qualidade de sócio, e não de empregado, com vistas às benesses que tal posição proporciona (como, por exemplo, participação na distribuição de lucros e ausência de controle de horário e de exclusividade na prestação de serviços), não pode, depois, tentar descaracterizar a relação societária a fim de forjar uma relação empregatícia que nunca existiu.

Em que pese a lógica acima, já se tornou prática comum no ramo jurídico a aventura jurídica no que tange ao ajuizamento de reclamações trabalhistas com o fito de receber verbas em relação às quais os sócios não possuem qualquer direito. Trata-se, por óbvio, de típico caso de enriquecimento ilícito, visto que há claro aumento patrimonial de um, em detrimento de outro, sem causa jurídica que o justifique, dada a inexistência de relação trabalhista. O questionamento que se faz é simples: como pode uma mesma pessoa pretender receber verbas trabalhistas quando já auferiu montante referente à mesma atividade, só que em posição de sócio?

Neste cenário, um escritório de advocacia ajuizou ação declaratória de quitação de verbas devidas em virtude de extinção parcial de sociedade advocatícia cumulada com reparação de danos em face de ex-sócio que, ao retirar-se da sociedade advocatícia, ajuizou reclamação trabalhista almejando o reconhecimento de vínculo trabalhista, apesar de ter figurado, por vontade própria, por mais de quatro anos, como sócio de serviço da mesma. A reclamação trabalhista, por óbvio, foi julgada improcedente[5], mas causou, por suas declarações falsas, prejuízos enormes à imagem do escritório não apenas perante os integrantes da sociedade, como também perante seus clientes.

O mais espantoso de tudo é que na ação declaratória supracitada o Ministério Público do Trabalho chegou a apresentar pedido de intervenção como assistente litisconsorcial do réu, ex-sócio, como se ele tivesse legitimidade para figurar em uma ação em que contendem um escritório de advocacia e um ex-sócio seu. Seria um absurdo admitir sua intervenção em demanda que está claramente fora de suas atribuições legais, como se pode extrair da simples leitura do artigo 83 da Lei Complementar n.º 75/93, que dispõe sobre a organização, as atribuições e o estatuto do Ministério Público da União:

“ Art. 83. Compete ao Ministério Público do Trabalho o exercício das seguintes atribuições junto aos órgãos da Justiça do Trabalho:

        I – promover as ações que lhe sejam atribuídas pela Constituição Federal e pelas leis trabalhistas;

        II – manifestar-se em qualquer fase do processo trabalhista, acolhendo solicitação do juiz ou por sua iniciativa, quando entender existente interesse público que justifique a intervenção;

        III – promover a ação civil pública no âmbito da Justiça do Trabalho, para defesa de interesses coletivos, quando desrespeitados os direitos sociais constitucionalmente garantidos;

        IV – propor as ações cabíveis para declaração de nulidade de cláusula de contrato, acordo coletivo ou convenção coletiva que viole as liberdades individuais ou coletivas ou os direitos individuais indisponíveis dos trabalhadores;

        V – propor as ações necessárias à defesa dos direitos e interesses dos menores, incapazes e índios, decorrentes das relações de trabalho;

        VI – recorrer das decisões da Justiça do Trabalho, quando entender necessário, tanto nos processos em que for parte, como naqueles em que oficiar como fiscal da lei, bem como pedir revisão dos Enunciados da Súmula de Jurisprudência do Tribunal Superior do Trabalho;

        VII – funcionar nas sessões dos Tribunais Trabalhistas, manifestando-se verbalmente sobre a matéria em debate, sempre que entender necessário, sendo-lhe assegurado o direito de vista dos processos em julgamento, podendo solicitar as requisições e diligências que julgar convenientes;

        VIII – instaurar instância em caso de greve, quando a defesa da ordem jurídica ou o interesse público assim o exigir;

        IX – promover ou participar da instrução e conciliação em dissídios decorrentes da paralisação de serviços de qualquer natureza, oficiando obrigatoriamente nos processos, manifestando sua concordância ou discordância, em eventuais acordos firmados antes da homologação, resguardado o direito de recorrer em caso de violação à lei e à Constituição Federal;

        X – promover mandado de injunção, quando a competência for da Justiça do Trabalho;

        XI – atuar como árbitro, se assim for solicitado pelas partes, nos dissídios de competência da Justiça do Trabalho;

        XII – requerer as diligências que julgar convenientes para o correto andamento dos processos e para a melhor solução das lides trabalhistas;

        XIII – intervir obrigatoriamente em todos os feitos nos segundo e terceiro graus de jurisdição da Justiça do Trabalho, quando a parte for pessoa jurídica de Direito Público, Estado estrangeiro ou organismo internacional.”

 

Resta claro que, de acordo com o supracitado artigo, as competências do Ministério Público do Trabalho se restringem aos conflitos de ordem laboral que tenham curso na Justiça do Trabalho, não podendo seus procuradores atuar em ações judiciais sem a cumulação dos requisitos mencionados. Como a ação declaratória ajuizada pelo escritório versava sobre direito estritamente individual e de natureza disponível, além da questão ser exclusivamente de natureza societária e indenizatória, tornava-se realmente impossível juridicamente a intervenção ministerial.

De acordo com o artigo 24 do Código de Processo Civil de 2016, na assistência litisconsorcial é necessário haver relação jurídica entre o assistente e o adversário do assistido[6]. Assim, para que o Ministério Público do Trabalho pudesse atuar como assistente na causa em questão seria indispensável que ele mantivesse com alguma das partes a mesma relação jurídica material de que cuida a demanda originária[7], o que era impossível de ocorrer, porque o escritório somente buscava a declaração de quitação das obrigações societárias, especialmente quanto à distribuição de lucros durante o período em que o ex-sócio figurou vinculado à sociedade.

Tão evidente é a afirmação acima que o pleito do Ministério Público do Trabalho foi indeferido por decisão incontestável, no seguinte sentido:

Indefiro a assistência pleiteada por não vislumbrar interesse jurídico que justifique a intervenção do Ministério Público do Trabalho na presente demanda, em que se busca unicamente o reconhecimento da quitação de obrigações de natureza societária e ressarcimento de danos morais decorrente de suposta conduta inadequada do demandado.”

Inconformado com esta decisão, o Ministério Público do Trabalho interpôs agravo de instrumento, o qual foi desprovido, mantendo-se a decisão agravada a fim de não aceitar a sua assistência na ação declaratória que tramita perante a Justiça Comum. Mostra-se inquestionável a decisão, principalmente por se tratar de demanda que cuida tão somente de interesses privados, existentes entre partes maiores e capazes, de cunho exclusivamente patrimonial.

A decisão supracitada mostra-se em perfeita harmonia com a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça no sentido de que a assistência litisconsorcial “exige a comprovação de interesse jurídico direto do pretenso assistente, ou seja, a demonstração da titularidade da relação discutida no processo, razão pela qual a eventual incidência de efeitos jurídicos por via reflexa não tem o condão de possibilitar a admissão do agravante na lide nessa modalidade de intervenção processual”[8].

De acordo ainda com a Colenda Corte, “o assistente deve manter relação jurídica com a parte que poderá vir a ser atingida, direta ou indiretamente, pelos efeitos da sentença futura, atingindo sua esfera jurídica”, sendo “justamente essa possibilidade de ser alcançado pelos efeitos da sentença que faz surgir o interesse jurídico do terceiro em ingressar no feito”. Conclui, ainda, que “a afinidade meramente acadêmica com a tese não autoriza o pedido de assistência”.[9]

Diante do exposto, conclui-se de forma escorreita que o parquet trabalhista não possui competência para intervir de nenhuma forma em ação de natureza puramente societária e civil. Evidentemente, a ação ajuizada pelo escritório não atingia o interesse jurídico da instituição na defesa de direitos sociais dos trabalhadores, como tentou fazer crer o membro do Ministério Público do Trabalho na referida causa. Não há, neste caso, sequer o risco de se sofrer os efeitos da sentença, nem se encontra a hipótese abarcada dentre suas atribuições legais.

 


[1] Art. 966. Considera-se empresário quem exerce profissionalmente atividade econômica organizada para a produção ou a circulação de bens ou de serviços.Parágrafo único. Não se considera empresário quem exerce profissão intelectual, de natureza científica, literária ou artística, ainda com o concurso de auxiliares ou colaboradores, salvo se o exercício da profissão constituir elemento de empresa.

[2] “Art. 39. A sociedade de advogados pode associar-se com advogados, sem vínculo de emprego, para participação nos resultados.”

[3] “Art. 2º O Contrato Social deve conter os elementos e atender aos requisitos e diretrizes indicados a seguir:

(…)

XIII – não se admitirá o registro e arquivamento de Contrato Social, e de suas alterações, com cláusulas que suprimam o direito de voto de qualquer dos sócios, podendo, entretanto, estabelecer quotas de serviço ou quotas com direitos diferenciados, vedado o fracionamento de quotas;”

[4]Art. 2° A sociedade de advogados será constituída por sócios patrimoniais ou por sócios patrimoniais e sócios de serviço, os quais não poderão pertencer a mais de uma sociedade na mesma base territorial de cada Conselho Seccional, independentemente da quantidade de quotas que possua cada sócio no contrato social.”

[5] A juíza concluiu, acertadamente, que: “Pelo que se infere do contexto probatório produzido nos autos, entendo que a reclamada se desincumbiu do ônus que lhe competia quanto a inexistência do contrato de trabalho subordinado nos moldes da Consolidação das Leis do Trabalho, pelo que julgo improcedente o pedido de reconhecimento de vínculo.”

[6] MEDINA, José Miguel Garcia. Novo Código de Processo Civil Comentado: com remissões e notas comparativas ao CPC/1973. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2015 – pág. 216.

[7] O Ministro Fernando Gonçalves já expôs, em sede de recurso especial, o entendimento de que: “A assistência litisconsorcial, contemplada no art. 54 do Código de Processo Civil, é fenômeno que somente se verifica no campo da legitimidade extraordinária, isto é, quando alguém vai a juízo em nome próprio para defender direito alheio. Assim, o assistente litisconsorcial (substituído) é o titular da própria relação jurídica material discutida no processo, que em face de determinadas circunstâncias, está sendo defendida por terceiro, na qualidade de substituto, ou mesmo na de co-titular do direito em litígio. Não é por outra razão que o assistente litisconsorcial pode integrar a demanda, desde o início, na condição de parte, isoladamente, ou na posição de litisconsorte facultativo unitário do assistido.” (STJ, REsp 802.342/PR, Quarta Turma, Relator Ministro Fernando Gonçalves, j. 09/12/2008, DJe 02/02/2009 – g.n.).

[8] STJ, AgRg no REsp 1.385.487/MG, Segunda Turma, Rel. Min. Herman Benjamin, julgado em 24/09/2013, DJe 09/12/2013.

[9] STJ, AgRg no RCDESP nos EREsp 414961/PR, Primeira Seção, Rel. Min. Luiz Fux, julgado em 24.05.2006.


Por: Dra. Raphaella Ayres Martins Oliveira

 

 


O artigo 31 da Lei n.º 9.656/98 e a polêmica sobre o direcionamento das ações de reajuste de plano de saúde coletivo aos (ex-)empregadores

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A Lei n.º 9.656/98, que dispõe sobre os planos e seguros privados de assistência à saúde, prevê em seu artigo 31 que:

“Ao aposentado que contribuir para produtos de que tratam o inciso I e o § 1o do art. 1o desta Lei, em decorrência de vínculo empregatício, pelo prazo mínimo de dez anos, é assegurado o direito de manutenção como beneficiário, nas mesmas condições de cobertura assistencial de que gozava quando da vigência do contrato de trabalho, desde que assuma o seu pagamento integral.”

Diante da ausência de clareza da redação do dispositivo supracitado, há tempos discute-se sobre sua adequada interpretação, principalmente no que tange à expressão “nas mesmas condições de cobertura assistencial”. Com o fito de sanar a referida lacuna, a Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) editou a Resolução Normativa n. º 279 de 2011 para regulamentar os artigos 30 e 31 da Lei n. º 9.656/98, prevendo no inciso II do artigo 2º que a expressão deve ser entendida como:

“mesma segmentação e cobertura, rede assistencial, padrão de acomodação em internação, área geográfica de abrangência e fator moderador, se houver, do plano privado de assistência à saúde contratado para os empregados ativos”.

No entanto, nem isso foi suficiente para cessar a discussão. A consequência prática – e, quase sempre, nociva – gerada por este debate é que ele acaba, por vezes, criando alguns equívocos não só no que concerne ao mérito da questão – o efetivo valor da contribuição a ser paga pelo ex-empregado-aposentado –, mas também no que diz respeito a quem deve figurar no polo passivo das ações que discutem o reajuste de plano de saúde coletivo.

Recentemente, o escritório C.Martins enfrentou questão prática em que determinado ex-empregado de uma grande empresa de pneumáticos almejava continuar figurando como beneficiário do plano coletivo de saúde contratado entre sua ex-empregadora e a operadora de plano de saúde. Ponto peculiar, porém, costumeiro, referia-se ao desejo de não só ser mantido no plano de saúde após a aposentadoria (o que é legítimo), como também de ser mantido na carteira de empregados ativos de sua ex-empregadora, embora já estivesse aposentado, a fim de que lhe fosse permitido pagar o mesmo valor de contribuição que era devido à operadora pelos funcionários que ainda se encontravam em atividade (cuja cobertura se dava por meio de apólice de pré-pagamento, diferentemente da apólice dos inativos, cuja natureza era de pós-pagamento).

Ora, claramente não se mostra viável, nem jurídica nem economicamente, o empregador manter em sua carteira de ativos um funcionário que já não conste mais em seu quadro de empregados simplesmente para beneficiá-lo com a manutenção do valor da contribuição do plano de saúde. Aliás, tal anseio não é nem mesmo abrigado pela norma legal muitas vezes invocada como se fosse tábua de salvação.

Deveras, o que se garante pela Lei nº 9.656/98, de forma simples e acertada, é apenas a manutenção das mesmas condições de cobertura assistencial, ou seja, o direito à manutenção da abrangência da cobertura dos sinistros e da rede hospitalar, não se estendendo este ao direito à manutenção do valor que era pago pelo ex-empregador[1] ou mesmo ao direito de permanecer em certa apólice quando existe uma específica para os funcionários inativos.

Para melhor aclarar a questão, faz-se necessário pontuar que é facultado[2] ao empregado optar, livremente, por (i) manter funcionários ativos e inativos na mesma apólice; ou (ii) prever apólices distintas para ativos e inativos, atendendo apenas a uma única exigência, a de que ambas as apólices sejam contratadas com uma única empresa operadora ou administradora.

Desta forma, alguns empregadores – frise-se, de forma lícita e comumente adotada pelo mercado – optam por contratar apólices com condições diferenciadas a depender da carteira. Assim, é bastante comum haver uma apólice de cobertura PÓS-PAGAMENTO (por administração) para os empregados ativos, com as despesas dos tratamentos com saúde suportadas pelo empregador; e outra de cobertura PRÉ-PAGAMENTO[3] para os demitidos e aposentados amparados pelos artigos 30 e 31 da Lei n.º 9.656/98, cujo custos são suportados pelos próprios segurados.

Diferente do que ocorre com os planos de saúde individuais, as mensalidades dos planos de saúde coletivos, sejam eles empresariais ou por adesão, não são fixadas pela ANS[4], Agência Reguladora com atribuição de controlar os reajustes das mensalidades apenas de planos de saúde individuais. Nos planos coletivos, os reajustes são definidos por outros parâmetros como, por exemplo, a sinistralidade, o custo-médico, a mudança de faixa-etária etc., devendo a Agência Reguladora somente ser comunicada a respeito[5].

Embora seja compreensível a frequente não-concordância com os valores pagos, os inativos buscam, muitas vezes, obrigações impossíveis, como a migração da apólice de empregados inativos para a apólice de empregados ativos, ou até mesmo a manutenção do valor da contribuição em patamar idêntico ao dos ativos.

Afastando a discussão sobre a viabilidade jurídica, a pretensão relativa à manutenção/revisão do plano deveria, ao menos, ser dirigida única e exclusivamente contra a operadora de plano de saúde, sem incluir o ex-empregador. Isso porque não cabe a este a comercialização da operação nem a prestação de serviços de cobertura médico-hospitalar. E mais, não cabe a ele manter o ex-empregado como beneficiário do plano de saúde, visto que o pagamento cabe exclusivamente a este último após a extinção do vínculo empregatício. Enfatiza-se que situação diversa seria se o ex-empregador deixasse de incluir o ex-empregado-aposentado em plano de saúde coletivo, caso em que haveria razão a pretensão ser dirigida também em face deste.

Apesar do entendimento discrepante ainda cometido por algumas Cortes locais, o Egrégio Superior Tribunal de Justiça já se posiciona de forma pacífica pela ilegitimidade do ex-empregador para figurar no polo passivo de ações ajuizadas por ex-empregados já aposentados nas quais se discutem os benefícios dos planos de saúde. O fundamento é deveras lógico, conforme se extrai de trecho de decisão paradigma abaixo:

“(…)

  1. No plano de saúde coletivo, o vínculo jurídico formado entre a operadora e o grupo de usuários caracteriza-se como uma estipulação em favor de terceiro. Por seu turno, a relação havida entre a operadora e o estipulante é similar a um contrato por conta de terceiro. Já para os usuários, o estipulante é um intermediário, um mandatário e não um preposto da operadora de plano de saúde.

  2. O estipulante é apenas a pessoa jurídica que disponibiliza o plano de saúde em proveito do grupo que a ela se vincula, mas não representa a própria operadora. Ao contrário, o estipulante deve defender os interesses dos usuários, pois assume, perante a prestadora de serviços de assistência à saúde, a responsabilidade pelo cumprimento de todas as obrigações contratuais de seus representados.

  3. A empresa estipulante, em princípio, não possui legitimidade para figurar no polo passivo de demanda proposta por ex-empregado que busca, nos termos dos arts. 30 e 31 da Lei nº 9.656/1998, a permanência de determinadas condições contratuais em plano de saúde coletivo após a ocorrência da aposentadoria ou da demissão sem justa causa, visto que atua apenas como interveniente, na condição de mandatária do grupo de usuários e não da operadora.”[6]

 

Desta forma, resta claro e evidente que o empregador figura como mero estipulante da apólice, não comercializando a operação nem a prestação dos planos de saúde. A partir do momento em que o vínculo empregatício é cessado, a relação jurídica de cobertura de plano de saúde fica restrita ao ex-empregado e à operadora do plano. Além disso, o empregador não possui poder para definir os valores cobrados e os benefícios assegurados, pois tal política compete única e exclusivamente à operadora do plano.

Diante do exposto, certo é o entendimento de que qualquer contenda acerca da abusividade dos reajustes das mensalidades dos planos de saúde coletivos deve ser trazida à baila no bojo de ação dirigida exclusivamente contra a operadora do plano de saúde, que possui o poder-dever de fixá-los e cobrá-los diretamente dos consumidores.

Baseado nessa exegese da lei é que, com primor, o escritório C.Martins conseguiu reverter, no âmbito do Superior Tribunal de Justiça, decisão do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro para excluir uma ex-empregadora do polo passivo da ação que almejava reajuste de mensalidade de plano de saúde e a restituição de todos os valores cobrados hipoteticamente em excesso[7].

 


[1] O Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva já fixou entendimento – cristalizado em sede da Terceira Turma do STJ – no sentido de que: “Não há falar em manutenção do mesmo valor das mensalidades aos beneficiários que migram do plano coletivo empresarial para o plano individual, haja vista as peculiaridades de cada regime e tipo contratual (atuária e massa de beneficiários), que geram preços diferenciados. O que deve ser evitado é a abusividade, tomando-se como referência o valor de mercado da modalidade contratual.” (STJ, REsp. 1.471.569, Relator Ministro Ricardo Villas BôasCueva, Terceira Turma, julgado em 01/03/2016, DJe 07/03/2016).

[2] Note-se que a intenção do Conselho de Saúde Suplementar nas Resoluções Consu n.° 20/99 e 21/99 foi exatamente de não prever como regra a contratação de um mesmo plano para ativos e exonerados ou demitidos, tratando-se como mera faculdade, desde que exista acordo formal entre o empregador e os empregados ativos ou seus representantes. O mesmo ocorre com a Resolução Normativa ANS n.º 279/11 (art. 13), que revogou as Resoluções Consu n.º 20 e 21/99, passando agora a regulamentar o art. 31 da Lei n.º 9.656/98.

[3] Art. 19, §10, da Resolução Normativa da ANS n. º 279/11.

[4]Em outras palavras, o reajuste anual nesse tipo de contratação é apenas acompanhado pela ANS, para fins de monitoramento da evolução dos preços e de prevenção de práticas comerciais abusivas, não necessitando, todavia, de sua prévia autorização” (STJ, REsp 1.471.569-RJ, Rel. Min. Ricardo Villas BôasCueva, julgado em 1/3/2016, DJe 7/3/2016).

[5]Segundo informação constante no próprio site da ANS (http://www.ans.gov.br/portal/site/perfil_consumidor/reajuste.asp#nor mas), de fato, o reajuste dos planos de saúde coletivo é feito com base na livre negociação entre as operadoras e os grupos contratantes.

[6]STJ, REsp 1.575.435/SP, Rel. Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, Terceira Turma, julgado em 24/05/2016, DJe 03/06/2016 (g.n.).

[7] Para fins de reporte, vide: STJ, REsp 1.671.722, Relator Ministro Luis Felipe Salomão, DJ 05/12/2017, DJe 01/02/2018.


Por: Dra. Raphaella Ayres Martins Oliveira


Os desdobramentos das novas regras de cobrança do ISS de Operadoras de Planos de Saúde e Administradoras de Cartão de Crédito

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Em 30.12.2016, após longos debates, foi aprovada a Lei Complementar nº 157, que alterou dispositivos do texto da LC nº 116, que disciplina as regras gerais do Imposto Sobre Serviços de Qualquer Natureza (ISS).

Referida aprovação foi seguida por uma “queda-de-braço” travada entre o Poder Executivo, por meio do Presidente da República, Michel Temer, e o Poder Legislativo, representado pelo Congresso Nacional.

Isso porque as inclusões dos incisos XXIII e XXIV ao artigo 3º da Lei Complementar nº 116, aprovadas pelo Poder Legislativo, foram vetadas pela Presidência. Os congressistas, nada obstante, derrubaram o veto presidencial e, em 01.06.2017, publicaram a Lei Complementar nº 157.

Os incisos XXIII e XXIV, definitivamente inseridos no ordenamento jurídico brasileiro após o conflito, são polêmicos e promoveram significativas mudanças, especialmente no que se refere ao ISS de operadoras de planos de saúde e ao ISS de administradoras de cartão de crédito.

É que, regra geral, o ISS é devido no local do estabelecimento prestador (artigo 3º da LC nº 116). A partir da publicação da LC nº 157, entretanto, com a inclusão dos incisos citados, o ISS passou a ser devido, nos serviços de operação de plano de saúde e de administração de cartão de crédito, no Município do domicílio do tomador.

A inovação legal, que a olhos menos atentos pode parecer inofensiva, traz consequências catastróficas. Sob o pretexto de distribuir mais uniformemente os valores recolhidos com o imposto municipal que, segundo dados da Confederação Nacional dos Municípios[1], concentra em 35 municípios 63% da arrecadação nacional a tal título, a Lei Complementar nº 157 pode, em verdade, contribuir para o isolamento dos pequenos municípios do país.

Outro argumento, este mais utilizado por Municípios maiores, como Rio de Janeiro e São Paulo, é o de que, antes das alterações trazidas pela Lei Complementar nº 157, perdiam arrecadação porque empresas prestadoras de serviços de operação de plano de saúde e de administração de cartões de crédito, embora tivessem como grande parte dos consumidores aqueles que residem em metrópoles, acabavam se instalando em municípios menores, em busca de benefícios fiscais ou alíquotas inferiores, na chamada Guerra Fiscal.

Tanto é assim que pouco tempo depois da publicação da Lei Complementar nº 157 o Município do Rio de Janeiro editou a Lei nº 6.263/2017 e o Município de São Paulo editou a Lei nº 16.757/17, ambas prevendo, para o ano de 2018, a exigência de observância das regras de recolhimento do ISS no domicílio do tomador dos serviços descritos.

Por mais que se argumente que o montante a ser pago em ISS de administradoras de cartão de crédito e em ISS de operadoras de planos de saúde não seja consideravelmente aumentado, tendo em vista as travas de alíquota mínima (2%) e máxima (5%) estabelecidas pela própria Lei, os custos vão muito além do tributo.

Segundo dados do Banco Mundial, o Brasil é o país onde se gasta mais tempo para pagar impostos[2]. As alterações promovidas pela Lei Complementar 157 contribuem para o agravamento da situação, uma vez que exigem que administradoras de cartões de crédito e das operadoras de planos de saúde acompanhem, diariamente, a legislação de cada município em que tenha consumidores para que consigam pagar o imposto devido.

De acordo com a Associação Brasileira de Planos de Saúde, dos 5.570 municípios existentes em nosso país, cerca de 3.800 têm menos de 1.000 beneficiários de planos de saúde. Em relação aos cartões de crédito, os números são similares. Estes consumidores, por conta das mudanças promovidas na legislação, tendem a ou ter que pagar mais caro pelos mesmos serviços ou, o que é mais provável, não poder contar mais com estes, já que serão, financeiramente, deficitários.

A ausência de praticidade tributária e o aumento dos custos das prestadoras que, invariavelmente, serão repassados aos consumidores foram, inclusive, citadas na Mensagem de Veto, emitida pelo Presidente da República ao se opor às alterações comentadas.

Além dos contornos práticos, há que se observar o artigo 146 da Constituição Federal, que trata especificamente das matérias que podem ser reguladas por Lei Complementar.

Nota-se que não há, nos incisos II e III deste artigo, menção à possibilidade de edição de Lei Complementar que altere a definição de sujeito ativo da relação jurídico-tributária, de modo que a justificativa constitucional para sistemática prevista pela Lei Complementar nº 157 deveria enquadrar-se no inciso I.

Este inciso possibilita a edição de Lei Complementar para tratar de conflitos de competência tributária, ou seja, para evitar a chamada Guerra Fiscal.

Sobre os conflitos de competência territorial tributária, têm-se como plenamente justificável a edição de Lei Complementar com definição expressa do sujeito ativo, em matéria de ISS, quando um serviço é prestado em mais de um município ao mesmo tempo ou quando o prestador, embora estabelecido em um município, preste serviços em outro.

Invariavelmente, todavia, há necessidade de que se verifique elemento de conexão entre realidade e determinação normativa, que para o ISS é a prestação de alguma atividade que componha o serviço no Município indicado como sujeito ativo pela legislação.

Não há como se estabelecer, seja para acabar com a Guerra Fiscal, seja para melhorar a distribuição dos recursos, que o ISS das operadoras de planos de saúde e o ISS das administradoras de cartões de crédito seja recolhido para município que não se relacione, ainda que minimamente, como fato gerador do tributo.

Exemplo disso é que as exceções à regra de que o ISS seria devido ao Município do “estabelecimento prestador”, previstas nas redações originárias dos artigos. 12, ‘a’ do Decreto Lei nº 406/68 e 3º da Lei Complementar nº 116, sempre trataram de situações em que havia algum serviço preponderantemente prestado no domicílio do tomador.

Indispensável, portanto, analisar a prestação de serviço em si para que se verifique a existência ou não de elemento de conexão apto a justificar a tributação de ISS das administradoras de cartão de crédito pelo município em que residente o tomador.

 

OS SERVIÇOS DE ADMINISTRAÇÃO DE CARTÕES DE CRÉDITO

As vendas com pagamentos realizados por meio de cartões de crédito inseridos em máquinas locadas ou de propriedade de estabelecimentos comerciais são o principal foco da alteração promovida. Resta saber, então, se alguma parte do serviço é efetivamente prestado na localidade da venda, de modo a existir o elemento de conexão citado que autorizaria a previsão de tributação pelo município em que domiciliado o tomador.

Na operação, o credenciador recebe solicitação de autorização do estabelecimento comercial para aceitar a operação. O credenciador solicita autorização para a bandeira que, por sua vez, envia a solicitação ao emissor. O emissor autoriza a transação. O emissor envia a fatura para o cliente. O emissor repassa o valor recebido ao credenciador, descontada a tarifa de intercâmbio. O credenciador repassa o valor da compra ao estabelecimento, deduzido da taxa de desconto. O credenciador remunera a bandeira pelo serviço prestado.

Os serviços que envolvem os cartões de crédito perfectibilizam-se nos estabelecimentos das administradoras (Emissores e Credenciadores), onde estão localizados todos os recursos humanos e tecnológicos para processamento das operações. Não há sequer um trecho do serviço que ocorra no domicílio do tomador (portador ou estabelecimento comercial).

O fato de a máquina de cartão estar localizada no estabelecimento comercial também não parece autorizar a cobrança do ISS no Município do referido estabelecimento. Isso porque o equipamento físico apenas captura os dados da operação (por exemplo, número do cartão, senha e valor) e os transmite ao credenciador (por exemplo, a Cielo) que os retransmitirá em tempo real à bandeira (por exemplo, Visa) e ao emissor do cartão (por exemplo, Banco do Brasil). A partir disso, as atividades necessárias para a autorização, o processamento e a cobrança da transação serão realizadas exclusivamente pelos estabelecimentos de cada agente financeiro (credenciador, bandeira e emissor).

Estas e outras possíveis inconstitucionalidades da Lei Complementar nº 157 já estão submetidas à apreciação do Supremo Tribunal Federal, na ADI 5.835, ajuizada pela Confederação Nacional do Sistema Financeiro (CONSIF) e pela Confederação Nacional das Empresas de Seguros Gerais, Previdência Privada e Vida, Saúde Suplementar e Capitalização (CNSEG).

No STF, o relator do caso, Ministro Alexandre de Morais, determinou a submissão da questão ao chamado rito abreviado o que, em tese, resultará em julgamento mais rápido da questão.

Paralelo a isso, algumas operadoras de planos de saúde têm recorrido individualmente ao judiciário e, em casos julgados em Rio Claro (SP) e Curitiba (PR), foram concedidas liminares suspendendo os efeitos de diversas leis municipais, em favor das operadoras que ajuizaram as ações, especialmente na parte em que alteraram o local de recolhimento do ISS incidente sobre seus serviços para o local do domicílio do tomador.

A justificativa é que, assim como ocorre com o ISS de administradoras de cartões de crédito, o ISS de operadoras de planos de saúde dever ser recolhido para o município com o qual efetivamente haja elemento de conexão com o serviço prestado.


[1] http://www.cnm.org.br/cms/images/stories/comunicacao_novo/links/HistoricoISS.pdf

[2] http://economia.estadao.com.br/noticias/geral,brasil-e-o-pior-pais-do-mundo-para-pagar-impostos-diz-banco-mundial,70002067604


 


Insolvência da pessoa jurídica: Consequência da crise ou estratégia

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Recente pesquisa realizada pelo Serasa Experian informou que foram requeridos 814 pedidos de recuperação judicial amparados na lei 11.101/2005, no período de janeiro a julho de 2017 que, inobstante a queda de 25, 9% comparado ao ano passado, permanece um número elevado e mais elevado ainda se comparado ao ano de 2015 com 627 pedidos. ¹

Fato um, essas recuperações judiciais permanecem no cenário econômico influenciando diretamente as operações de empréstimo, bem como a circulação de ativos. E é nesse meio de insegurança que o direito se torna fundamental para resguardar os interesses tanto do empresário de boa-fé, quanto dos credores do empresário de má-fé.

Fato dois, um país, politicamente instável e economicamente em crise, gera um efeito cascata de prejuízo no meio privado, o que torna frequente alegações de escassez da verba pública e queda de investimento a justificarem o inadimplemento ou possíveis quebras contratuais.

Assim, um dos desafios jurídicos nesse cenário apresenta-se em como distinguir o empresário em via de ruir, do empresário fraudador que, não obstante também ter sido afetado pela crise, tinha capacidade econômica para permanecer estável.

Certo é, o empresário de boa-fé deve ser amparado pelas benesses da lei de recuperação, na contramão, ao empresário fraudador devem ser aplicadas as sanções devidas, posto que ambos são nocivos para uma sociedade que busca estabilidade econômica e, principalmente, confiança mercadológica.

Não pode ser esquecido que o empresário de boa-fé, agora em crise, já tivera bom índice de liquidez imediata, ou seja, seus valores em caixa, aplicações financeiras, receitas, já foram suficientes para pagamento do passivo existente, assim como a sua subsistência agrega benefícios para sociedade como um todo. Portanto, o aproveitamento das facilidades concedidas pela lei 11.101/05, tais como “concessão de prazos e condições especiais para pagamento das obrigações vencidas ou vincendas” (artigo 50, I), “a suspensão de todas as ações ou execuções contra o devedor”(artigo 52, III), se torna perfeitamente defensável.

Os mecanismos do direito funcionam de modo a criar um cenário de segurança mesmo dentro da instabilidade financeira, principalmente para resguardar o empresário surpreendido por fatores externos, com passivo a descoberto. ²

Ocorre que, muitos desses “bons” empresários não sabem as consequências dentro do mercado advindas do ajuizamento de uma recuperação judicial, dentre elas a trava bancária dos recebíveis, o vencimento antecipado de alguns contratos, o afastamento dos investidores, a ruptura na linha de crédito, dentre outras. Desse modo, a análise jurídica eficiente da empresa deficitária, além de fornecer a confiança necessária àquele que busca a recuperação de seu negócio, fornece segurança ao investidor interessado, bem como indica aos credores os meios perpetrados pelo referido empresário, ou para se tornar novamente solvente, ou os meios pelo qual ruiu seu estabelecimento comercial propositalmente.

Para um primeiro entendimento do caminho que esse exame legal percorre, se faz necessário entender o que vem a ser estabelecimento comercial.

O Código Civil, em seu artigo 1.142, dispõe que estabelecimento comercial é “todo complexo de bens organizado, para o exercício da empresa, por empresários, ou por sociedade empresária”. A análise de tais bens, sejam corpóreos (mercadorias, equipamentos, matéria-prima), sejam incorpóreos (ponto comercial, marcas, patentes, nome do empresário). Sendo de extrema relevância a análise de todo estabelecimento comercial na busca por fraudes e, consequentemente, para entendimento do perfil daquele empresário.

Não é incomum averiguar que, enquanto a pessoa jurídica de determinada sociedade vem a falir, a pessoa física do sócio, ou outra empresa que possua participação, enriqueça. Muitas das vezes tal falência é engenhosamente preparada através de substituição de sócios, constituição de novo CNPJ, transferências de bens móveis e imóveis, dentre outras artimanhas.

Como dito, a lei cria mecanismos de proteção para ambas as partes de um negócio, tanto aquele que presta o serviço, quanto aquele que o adquire, assim, como é possibilitado à empresa devedora utilizar a norma de recuperação judicial para se reerguer, é permitido ao credor – verificado o abuso da personalidade jurídica daquela – utilizar meios legais disponíveis para sua proteção; entre eles está o instituto da desconsideração da personalidade jurídica.

O ordenamento jurídico brasileiro protege a pessoa física do sócio, proteção esta gerada pela atuação autônoma da pessoa jurídica através da separação do seu patrimônio e responsabilidade daqueles indivíduos que compõe seu quadro societário. Tal separação é necessária no meio empresarial com fim precípuo de fomentar a atuação negocial, mesmo que haja vicissitude econômica.

Ocorre que, quando há abuso da personalidade jurídica, caracterizado pela confusão patrimonial e/ou desvio de finalidade, é viável ao credor o requerimento da aplicação da teoria maior da desconsideração da personalidade jurídica, extraída do artigo 50 do Código Civil, a permitir a extensão de determinadas relações obrigacionais aos bens particulares dos sócios. O atual Código de Processo Civil regulamentou o incidente de desconsideração da personalidade jurídica em seu artigo 133 e seguintes, estabelecendo o procedimento e as etapas necessárias para sua instauração.

O exemplar intitulado Fraudes Patrimoniais e a Desconsideração da Personalidade Jurídica no Código de Processo Civil de 2015 dispõe que “na desconsideração da personalidade jurídica, a sociedade continua a existir, tendo apenas o seu limite patrimonial desconsiderado (rectius: considerado inoponível ou relativamente ineficaz), excepcional e episodicamente, para que a responsabilidade pelo cumprimento forçado de determinada obrigação recaia sobre os bens presentes tanto no patrimônio da sociedade, quanto no do sócio.” ³

Outro mecanismo que visa inibir atuações fraudulentas e, consequentemente, proteger credores se encontra na comprovação da sucessão empresarial. Com brio, o C. Martins pode apontar o sucesso na procedência do pedido de sucessão empresarial de grande rede de supermercados, na qual foi possível demonstrar ao juízo que a empresa, a priori devedora, em verdade havia sido sucedida por outra pessoa jurídica, que se aproveitara de seu ponto comercial, sua clientela, seus bens móveis, deixando o passivo para empresa sucedida.

A referida vitória só foi possível após análise minuciosa dos bens corpóreos e incorpóreos da empresa, pesquisa nas juntas comercias e investigação do histórico não só dos sócios, como dos familiares dos sócios.

Assim, pode-se concluir que, a análise da situação – financeira e legal – da pessoa jurídica devedora se demonstra imperiosa, tanto para lhe fornecer a melhor diretriz jurídica a viabilizar sua recuperação, quanto para instruí-la dos riscos oriundos de atuações negociais controversas que, num futuro próximo, poderão lhe ser inquiridas através de uma desconsideração da personalidade jurídica, sucessão empresarial, entre outros mecanismos legais a serem utilizados por credores diligentes.


¹ http://noticias.serasaexperian.com.br/blog/2017/08/02/numero-de-recuperacoes-judiciais-cai-263-em-julho-revela-serasa-experian/
² Quando o valor das obrigações para com terceiros é superior ao dos ativos.
³ BRUSCHI, Gilberto Gomes; NOLASCO, Rita Dias; AMADEO, Rodolfo da Costa Manso Real; Fraudes Patrimoniais e a Desconsideração da Personalidade Jurídica no Código de Processo Civil de 2015, São Paulo: Editora Revista dos Tribunais Ltda, 2016. p.138 e 139.

 

Por: Dra. Nayara Taylla Gomes de Souza


ICMS e Internet Banda Larga

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A veleidade exegética que algumas empresas provedoras de acesso à internet via “banda larga” vêm emprestando a certos julgados dos tribunais as tem levado a considerar inexigível o ICMS incidente sobre os serviços de comunicação prestados em favor de seus clientes.

 

O objetivo deste artigo é examinar a validade, ou não, de semelhante raciocínio, analisando se a referida atividade se traduz em prestação de serviço de comunicação, que é fato imponível do ICMS, conforme definido no art. 2º, inciso III, da Lei Complementar n.º 87/96, ou de serviço de valor adicionado, que não é hipótese de incidência do referido tributo, nos termos do art. 61 da Lei n.º 9.472/97.

 

Pois bem. Tirante algumas variações pontuais, essas empresas alegam que o serviço de provedor de acesso à internet “banda larga” não se confunde com serviço de comunicação, na medida em que este apenas agregaria suporte ao primeiro. Todavia, não restam dúvidas de que o serviço prestado por elas preenche o fato típico descrito no art. 155, inciso II, da CF, já que o prestador de serviço de comunicação é aquele que fornece os meios não apenas necessários ao transporte das mensagens, mas também aquele que torna possível a comunicação em si, sendo certo que em função das diversidade de meios podem existir distintos tipos de serviço de comunicação.

 

Não é por outra razão, aliás, que o art. 2º, inciso III, da Lei Complementar n.º 87/96 assim dispõe:

 

Art. 2º. O imposto incide sobre:

(…)

III – prestações onerosas de serviços de comunicação, por qualquer meio, inclusive a geração, a emissão, a recepção, a transmissão, a retransmissão, a repetição e a ampliação de comunicação de qualquer natureza;” (g.n.).

 

Não se desconhece a jurisprudência do E. STJ que afasta a incidência do ICMS dos provedores de internet, mas sempre destacando que o imposto incide sobre a empresa de telefonia. Esses casos tratam da chamada “internet discada”, em que o usuário se utiliza dos serviços de telefonia, usualmente a fixa comutada, para acessar o terminal do seu provedor. No entender dessa jurisprudência, haveria serviço de comunicação na telefonia, e não no acesso à internet.

 

Ocorre que a tecnologia mudou, e assim também a exegese do E. STJ a respeito do tema, surgindo um novo tipo de acesso, o chamado “em banda larga”, que é provido diretamente pelas empresas de internet. Em relação a esse tipo de caso, a jurisprudência se fixou no sentido de reconhecer a tributabilidade do serviço, conforme se observa da ementa abaixo transcrita:

 

TRIBUTÁRIO – ICMS – ACESSO À INTERNET – SISTEMA VIRTUA – BENEFÍCIO FISCAL DE REDUÇÃO DA BASE DE CÁLCULO DEVIDO ÀS EMPRESAS DE TV POR ASSINATURA – RICM/96 DE MINAS GERAIS – NÃO INCIDÊNCIA.

  1. O Sistema denominado Virtua, fornecido pela empresa NET de Belo Horizonte aos seus assinantes como meio físico de comunicação, que proporciona o acesso aos provedores da Internet “banda larga”, representa serviço distinto do serviço de TV a cabo prestado na forma da Lei 8.977/95 e da Resolução/ANATEL 190/99.
  2. Serviço que também não se confunde com o de “prestação de serviço de provedor” de acesso à Internet, serviço de valor adicionado (art. 61 da Lei 9.472/97) isento da tributação do ICMS, conforme precedente da Segunda Turma do STJ, de minha relatoria (Resp 456.650/PR).
  3. Tratando-se de serviço novo, não goza do benefício fiscal de redução da base de cálculo previsto no Anexo IV, item 36, do RICMS/96, do Estado de Minas Gerais para os serviços de TV a cabo.
  4. Recurso a que se nega provimento.

 

(RMS 16767-MG, rel. Ministra Eliana Calmon, 2ª Turma, j. 05/10/2004, DJ 17/12/2004, p. 470).

 

Como o serviço prestado pelas referidas empresas não envolve acesso discado, já obsoleto, senão que provimento direto de acesso à rede mundial de computadores, sujeitam-se claramente ao ICMS, não havendo como negar que as provedoras de acesso à internet proporcionam o serviço de comunicação aos usuários, na medida em que permitem a esses receberem os dados que são transmitidos de um servidor localizado em outro ponto.

 

Em outras palavras, o provedor de acesso à internet atribui ao usuário um endereço lógico que irá permitir que ele seja reconhecido pelos demais na rede. Uma vez conectado à rede, por meio de endereço IP (Internet Protocol) alocado pelo provedor de acesso, instaura-se uma conexão entre os dois endereços IP alocados em endereços lógicos distintos. Esse serviço assegura a constância da comunicação e o fluxo de pacotes que precisem por ele transitar, podendo oferecer, ainda, outros serviços como programas de transferência de arquivos (FTP) e correio eletrônico (SMTP), entre outros.

 

Seja concedido frisar que a internet demanda, para a transmissão de mensagens, a existência de um endereço lógico de origem e outro de destino, endereço esse que não é fornecido ao usuário pela operadora de telecomunicações, mas sim pela provedora de acesso à rede mundial.

 

Portanto, é de fácil percepção que a provedora fornece “algo mais” do que o viabilizado pela operadora, que se insere como um meio diferenciado de realização da transmissão de mensagens. Esse “algo mais” é evidentemente um serviço de comunicação, estando abarcado pela parte final do inciso III, art. 2º, da Lei Complementar n.º 87/96 (acima transcrito), pelo art. 2º, inciso III, da Lei n.º 2.657/96 e pelo art. 155, inciso II, da CF.

 

Sequer se poderá invocar o verbete 334 do repositório de súmulas do E. STJ para daí extrair que a matéria estaria pacificada no âmbito da jurisprudência, e tal se afirma, primeiro, pelas razões acima expostas acerca da especificidade da conexão via “banda larga”; e segundo, porque não é a citada Corte quem detém competência para apreciar de forma definitiva a matéria, já que em se tratando de discussão acerca da hipótese de incidência do ICMS (se o serviço de provedor de acesso à internet está, ou não, compreendido na competência tributária estadual), a regra matriz está na Constituição Federal, cabendo, portanto, ao E. STF a última palavra sobre o assunto.

 

De toda sorte, o art. 61, § 1º, da Lei n.º 9.472/97, ao excluir o serviço de valor adicionado do serviço de telecomunicações, não modificou o conceito de serviço de comunicação, que é hipótese de incidência do ICMS constitucionalmente prevista. Isso porque serviço de comunicação e serviço de telecomunicação não se confundem, sendo este espécie, e aquele, gênero.

 

Sobre o que seja telecomunicação, reproduz-se abaixo o entendimento de José Eduardo Soares de Melo:

 

Trata-se de espécie de comunicação, sendo conceituada legalmente (Lei n.º 9.472/97) da seguinte forma:

‘Art. 60. (…).

 

  • 1º. Telecomunicação é a transmissão, emissão ou recepção de símbolos, caracteres, sinais, escritos, imagens, sons ou informações de qualquer natureza por fio, radioeletricidade, meios óticos ou qualquer outro eletromagnético.

 

  • 2º. Estação de telecomunicações é o conjunto de equipamentos ou aparelhos dispositivos e demais meios necessários à realização de telecomunicações, seus acessórios e periféricos e, quando for o caso, as instalações que os abrigam e complementam, inclusive terminais portáteis.’

 

 

Assim, ainda que o mencionado dispositivo legal afaste o valor adicionado de serviço de telecomunicação, não excluiu do conceito de serviço de comunicação, mais amplo, que é hipótese de incidência do ICMS, nos termos do citado art. 155, inciso II, da CF.

 

Deve-se ter em mente que a competência dos Estados para instituição do ICMS sobre serviços de acesso à internet tem fundamento de validade na Constituição Federal de 1988, que prevê os serviços de comunicação como hipótese de incidência do tributo, não sendo outro o sentido da norma contida no art. 156, inciso III, que ao fixar, por exclusão, o fato gerador do imposto municipal (ISS), estabelece preferência ao imposto estadual (ICMS), além de exigir que os serviços de competência municipal estejam expressamente definidos em lei complementar, a qual, a propósito, não contempla o serviço de provedor de internet como fato gerador do aludido imposto.

 

Portanto, ainda que a Lei n.º 9.472/97 disponha que o serviço em relevo não constitui atividade de telecomunicação, não é cabível o entendimento acerca da não ocorrência do fato gerador do ICMS no caso específico da conexão via “banda larga”, seja pela existência efetiva de ato de comunicação (muito mais amplo do que aquele), seja pela definição da hipótese de incidência tanto na Constituição da República (art. 155, inciso II) quanto na lei complementar (LC 87/96, art. 2º, inciso III) e na lei estadual (Lei n.º 2.657/96, art. 2º, inciso III).


Compensação de tributos com precatórios cedidos por terceiros

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Não tem sido raro ver alguns contribuintes, devedores de tributos, pleitearem a compensação de suas dívidas com créditos que têm a receber das Fazendas a título de precatórios com prazo de pagamento já vencido. Isto porque o art. 78 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT) passou a conferir, a esses precatórios cujo prazo de liquidação já se expirou, poder liberatório do pagamento de tributos da entidade devedora.

 

O objetivo deste artigo é examinar a validade, ou não, desta pretensão, assim como sua aplicação ao caso em que o contribuinte passa a deter o crédito por força de cessão de direito protagonizada pelo credor originário.

 

Afirma-se, primeiramente, não se mostrar razoável a aplicação do art. 78, § 2º, do ADCT à hipótese em que o precatório judicial foi inscrito não em nome do contribuinte devedor, mas sim de terceiro, pois a ratio da norma constitucional transitória, ao estabelecer o poder liberatório do precatório vencido e não liquidado, inegavelmente foi o de dispensar o credor originário do pagamento de seus débitos tributários, e não o de favorecer terceiros para os quais haja sido negociado o referido crédito, com o deságio que é natural em ocasiões tais, e que nenhuma relação jurídica tem com a Fazenda.

 

Dito de outra forma, o crédito que o contribuinte afirma possuir em tais casos é oriundo não de precatório, mas sim de contrato de cessão civil celebrado entre ele e o credor originário, em relação ao qual a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça (STJ) tem se posicionado no sentido de reconhecer sua não liquidez, seja pela impossibilidade de saber a data exata do pagamento do precatório, seja porque os créditos podem ser cedidos concomitantemente a diversas pessoas (REsp 951976-RS e REsp 586.172-DF).

 

Por tais razões, a vingar a pretensão desses contribuintes, estar-se-ia atribuindo efeito liberatório não ao precatório propriamente dito, mas sim ao contrato particular de cessão de crédito firmado entre ele e o originário credor do precatório judicial, em total desvirtuarmento do que a norma constitucional transitória pretendeu assegurar.

Inaplicabilidade do Art. 78, § 2º, do ADCT a Determinadas Situações

 

Consoante o regime constitucional estabelecido no corpo permanente da Constituição Federal, os credores têm a garantia de receber do Poder Público o pagamento da totalidade dos seus créditos, observada a ordem de precedência indicada no art. 100, que hospeda a seguinte norma:

 

Art. 100. à exceção dos créditos de natureza alimentícia, os pagamentos devidos pela Fazenda Federal, Estadual ou Municipal, em virtude de sentença judiciária, far-se-ão exclusivamente na ordem cronológica de apresentação dos precatórios e à conta dos créditos respectivos, proibida a designação de casos ou de pessoas nas dotações orçamentárias e nos créditos adicionais abertos para este fim.

 

Sem prejuízo dessa regra, a Emenda Constitucional n.º 30/00 facultou à Fazenda Pública proceder ao parcelamento do débito em até dez prestações anuais, ressalvadas as exceções constantes do art. 78 do ADCT, de seguinte teor:

 

Art. 78. Ressalvados os créditos definidos em lei como de pequeno valor, os de natureza alimentícia, os de que trata o Art. 33 deste Ato das Disposições Constitucionais Transitórias e suas complementações e os que já tiverem os seus respectivos recursos liberados ou depositados em juízo, os precatórios pendentes na data de promulgação desta Emenda e os que decorram de ações iniciais ajuizadas até 31 de dezembro de 1999 serão liquidados pelo seu valor real, em moeda corrente, acrescido de juros legais, em prestações anuais, iguais e sucessivas, no prazo máximo de dez anos, permitida a cessão dos créditos.”

 

Com efeito, a norma acima transcrita não excluiu a regra de precedência previsto no art. 100, senão que apenas instituiu a possibilidade de parcelamento dos precatórios para as situações especificadas. Coexistem os dois regimes de pagamento: o permanente, para as requisições de precatórios posteriores à promulgação da Emenda Constitucional n.º 30/00, e o transitório, para os créditos a que alude o art. 78 do ADCT.

 

Em contrapartida à possibilidade de parcelamento, o poder constituinte de reforma estabeleceu a garantia de que o pagamento das parcelas deve se suceder até a plena satisfação do credor, sem quaisquer outras postergações. Assim, enquanto no regime constitucional permanente a garantia do credor consiste em receber, na sua vez, a totalidade do crédito, o regime das disposições transitórias conferiu ao credor “prejudicado” pelo parcelamento uma espécie de compensação, qual seja, o direito de abater as obrigações tributárias pecuniárias com o valor das prestações anuais, na hipótese de haver atraso da Fazenda no pagamento das parcelas (ADCT, art. 78, § 2º).

 

Veja-se, por amor à clareza, o teor da referida norma:

 

§ 2º. As prestações anuais a que se refere o caput deste artigo terão, se não liquidadas até o final do exercício a que se referem, poder liberatório do pagamento de tributos da entidade devedora.

 

Diante da possibilidade de vir a ocorrer, em detrimento dos créditos parcelados, a previsão orçamentária apenas dos precatórios submetidos ao regime permanente, o poder constituinte derivado apontou o vencimento do prazo e a não inclusão das parcelas no orçamento como causas legitimadoras do poder liberatório das obrigações tributárias, mas apenas assegurando esse direito, repita-se, aos credores cujos precatórios tenham sido submetido ao pagamento parcelado, em contrapartida ao tempo maior a que se sujeitarão para o recebimento do crédito.

 

No Estado do Rio de Janeiro, por exemplo, não se adotou esse regime excepcional de pagamento dos seus precatórios, optando, ao revés, pela manutenção da regra geral prevista no art. 100 da CF, circunstância essa que é bastante, por si só, para afastar a pretendida aplicação ao caso concreto da norma constante do § 2º, art. 78, do ADCT.

 

Seja concedido o registro de que a alteração normativa introduzida pelo constituinte derivado foi erigida em favor do ente público que tivesse, no ano seguinte à promulgação da Emenda Constitucional n.º 30/00, possibilidade de conduzir sua gestão orçamentária para a satisfação da décima parte do somatório dos valores de todos os precatórios pendentes à época.

Tal não é a situação do Estado do Rio de Janeiro, que não ostentava forças para satisfazer o pagamento, já no ano seguinte ao da referida emenda, de 10% dos precatórios vencidos e não pagos durante décadas.

 

A adoção, ou não, do parcelamento em cada um dos estados federados constituiu, assim, manifestação do poder de auto-gestão, ínsito à autonomia constitucionalmente assegurada aos mesmos, que se materializa através do poder de organização própria e da autonomia financeira, ambas protegidas como cláusulas pétreas (CF, art. 60, § 4º, inciso I).

 

O reconhecimento de que a compensação prevista no art. 78, § 2º, do ADCT está condicionada à adoção do regime de parcelamento já foi firmada em diversos julgados do E. Superior Tribunal de Justiça, como se observa, exemplificativamente, das ementas abaixo transcritas:

 

PROCESSUAL CIVIL. RECURSO ORDINÁRIO EM MANDADO DE SEGURANÇA. DÉBITOS COM A FAZENDA PÚBLICA ESTADUAL. COMPENSAÇÃO COM PRECATÓRIO. INVIABILIDADE.

  1. Analisando-se a sistemática prevista no art. 78 do ADCT, constata-se que, enquadrando-se o crédito em alguma das hipóteses previstas no caput do artigo referido — precatórios pendentes na data de promulgação da EC 30/2000 e os que decorram de ações iniciais ajuizadas até 31 de dezembro de 1999 —, e estabelecido o parcelamento, o inadimplemento de alguma das parcelas atribui ao respectivo crédito poder liberatório do pagamento de tributos da entidade devedora (§ 2º).

(…)

  1. Assim, considerando que a norma estadual em comento não é incompatível, formal e materialmente, com os preceitos constitucionais referidos, e que não ofende o princípio da razoabilidade — pois a sua não-observância acarreta, como bem observou o Tribunal de origem, comprovação insuficiente acerca dos créditos obtidos por meio de cessão —, impõe-se reconhecer a sua legitimidade e, consequentemente, reconhecer a inexistência de direito líquido e certo na hipótese.

(…)

  1. Recurso ordinário desprovido.

 

(RMS 28406-PR, rel. Ministra Denise Arruda, 1ª Turma, j. 19/03/2009, DJe 16/04/2009) (g.n.)

***

 

PROCESSUAL CIVIL. RECURSO ORDINÁRIO EM MANDADO DE SEGURANÇA. DÉBITOS COM A FAZENDA PÚBLICA ESTADUAL. COMPENSAÇÃO COM PRECATÓRIO DE NATUREZA ALIMENTAR ADQUIRIDO POR MEIO DE CESSÃO DE CRÉDITO. INVIABILIDADE.

  1. Analisando-se a sistemática prevista no art. 78 do ADCT, constata-se que, enquadrando-se o crédito em alguma das hipóteses previstas no caput do artigo referido — precatórios pendentes na data de promulgação da EC 30/2000 e os que decorram de ações iniciais ajuizadas até 31 de dezembro de 1999 —, e estabelecido o parcelamento, o inadimplemento de alguma das parcelas atribui ao respectivo crédito poder liberatório do pagamento de tributos da entidade devedora (§ 2º).
  2. No entanto, é distinta a hipótese dos autos. Do exame dos documentos acostados, verifica-se que o crédito embutido no Precatório 92.093/2003 tem natureza alimentar, circunstância expressamente ressalvada pelo caput do art. 78 do ADCT, apta a obstar o parcelamento do referido crédito. Assim, inexistindo parcelamento e, consequentemente, parcela inadimplida, não há falar na incidência do § 2º do artigo em comento. Assim, ao contrário do que sustenta a recorrente, o “poder liberatório” está condicionado ao enquadramento na sistemática prevista no art. 78 do ADCT.

(…)

  1. Recurso ordinário desprovido.

 

(RMS 28811-PR, rel. Ministra Denise Arruda, 1ª Turma, j. 26/05/2009, DJe 18/06/2009) (g.n.).

 

Essa parece ser a única forma de interpretar a norma transitória de direito constitucional sem subverter o próprio sistema de precatórios estabelecido pelo art. 100 da CF, que estaria irremediavelmente aniquilado caso o credor pudesse, ao seu alvedrio e independentemente da adoção do regime de parcelamento pelo ente federado, impor o efeito liberatório a toda e qualquer mora quanto ao prazo de pagamento.

 

A não ser assim, haveria ofensa a princípios caros ao ordenamento jurídico, como os da isonomia e da impessoalidade, que informam o regime constitucional dos precatórios, pois semelhante procedimento conferiria tratamento privilegiado a alguns em detrimento dos credores que estão à frente, agravando-se a situação quando estes fossem titulares de créditos de natureza alimentar.

 

Não é por outra razão que o Min. Gilmar Mendes, ao apreciar o Pedido de Intervenção 2.915, assim se manifestou:

 

Assegurar, de modo irrestrito e imediato, a eficácia da norma contida no art. 78 do ADCT, pode representar negativa de eficácia a outras normas constitucionais. (…) Desse modo, não há direito líquido e certo da impetrante de ser amparado por mandado de segurança, vez que o sequestro constitucional, previsto no art. 78, § 4º, do ADCT, não pode ser determinado por implicar a preterição da ordem de precedência dos precatórios de crédito da mesma natureza e, ainda, o que é mais grave, em preterição de créditos alimentares, que preferem aos da impetrante que não tem essa natureza.

 

Embora examinando a hipótese de seqüestro, as razões explicitadas para o caso acima aludido são inteiramente aplicáveis à hipótese ora cogitada, especialmente na parte em que reconhece que a aplicação inadequada do art. 78 do ADCT implica em violação da ordem de preferência consagrada no art. 100 da CF.

 

Ausência de Lei Específica

 

A Administração Pública está adstrita ao principio da legalidade, em acepção diversa da que assume este para o particular. Assim é que todo atuar estatal deriva da lei (em sentido amplo), não lhe sendo dado agir por obra e desígnio do administrador senão no espaço aberto pela lei.

 

No direito financeiro e no direito tributário, o principio da legalidade assume especial destaque e ganha relevo próprio. Se, à primeira evidência, o sentido que mais facilmente deflui de sua interpretação é aquele inscrito no art. 150, I, da CF, não se há de deixar de perceber a vinculação das autoridades fazendárias aos limites abertos pela lei.

 

O que se afirma, de outro modo, é a impossibilidade de uma interpretação que, desvirtuando os limites autorizados pelo legislador, permita ao administrador a atuação através de seus próprios caprichos. Ainda que a atuação do administrador não seja calcada em interesse pessoal e busque, por objetivo, o bem comum, estará eivada de vício se não contar com o escudo legal.

 

Desta feita, a instituição de um procedimento para o pagamento de precatórios não autoriza o seu desvirtuamento pela mera vontade do credor. Igualmente, a criação de uma possibilidade de compensação de precatórios com tributos somente poderá ser autorizada nos exatos termos em que prevista em lei.

 

Pois bem. A compensação, como forma de extinção do crédito tributário, está prevista no art. 156, inciso II, do CTN, diploma legal esse, no entanto, que em seu art. 170 condiciona a utilização do procedimento à existência de lei especifica autorizativa do ente tributante[1].

 

O Decreto-Lei n.º 05/75 (Código Tributário do Estado do Rio de Janeiro), em seu art. 190, ao reproduzir tal exigência, deixa claro que, ao contrário da compensação do direito privado, a compensação no direito tributário dá-se apenas de forma legal, não admitindo hipótese de compensação consensual ou judicial[2].

 

Tratando-se de ICMS, não há no Estado do Rio de Janeiro lei autorizando a compensação na circunstância acima mencionada, circunstância essa que obsta a extinção do crédito tributário mediante aproveitamento de crédito decorrente de cessão de precatório judicial. O E. TJRJ possui posição consolidada nesse sentido, vedando a compensação de crédito tributário, com base na inexistência de lei específica que regule a matéria, conforme se observa da seguinte decisão:

 

MANDADO DE SEGURANÇA. ICMS SOBRE FORNECIMENTO DE ENERGIA ELÉTRICA. DECRETO ESTADUAL 27.427/2000 E LEI ESTADUAL 2.657/1996. ATO CONCRETO. AUTORIDADE COATORA. PRESTAÇÃO DE TRATO SUCESSIVO. ALÍQUOTA. INSCONSTITUCIONALIDADE RECONHECIDA PELO ÓRGÃO ESPECIAL. EFEITO VINCULANTE. IMPOSSIBILIDADE DE COMPESAÇÃO.

(…) Não é possível a compensação tributária, uma vez que o art. 170 do CTN exige lei especifica sobre o tema, sendo esta inexistente. CONCESSÃO PARCIAL DA ORDEM.

 

(MS 1.618/08, 9ª Câmara Cível, rel. Des. Roberto de Abreu e Silva, j. 28/04/09) (g.n.).

 

Confirma esse raciocínio a decisão proferida na ADI 2.581-1, de relatoria do Ministro Carlos Veloso, que reconheceu a constitucionalidade de lei do Estado de Rondônia que autoriza a compensação de créditos tributários com crédito decorrente de precatório judicial pendente de pagamento, com base no art. 78, § 2º, do ADCT. Desta decisão, depreende-se que não há questionamento quanto à legitimidade da previsão desse tipo de compensação pela Constituição Federal; entretanto, faz-se necessária a edição de lei estadual específica que a regulamente, dando efetividade à compensação pretendida, lei essa que não existe no território fluminense.

 

Eficácia Limitada do Art. 78, § 2º, do ADCT

 

Como visto, alguns contribuintes escoram sua pretensão no § 2º do art. 78 do ADCT – com redação conferida pela Emenda Constitucional n.º 30/00 –, que prevê o caráter liberatório das obrigações tributárias pecuniárias na hipótese de atraso no pagamento parcelado dos precatórios pelo ente devedor.

 

Todavia, ao contrário do que pode parecer, o referido dispositivo, por si só, não dispõe de todos os elementos capazes de disciplinar o exercício do direito ali previsto, sendo inegável a imprescindibilidade de regulamentação especifica pelo ente tributante. Trata-se de norma constitucional de eficácia limitada.

 

Dito de outro modo: a generalidade da redação da norma enfocada demonstra a necessidade de regulamentação por parte dos entes federativos, de forma a atribuí-la eficácia plena, uma vez que de sua simples leitura não há como se estabelecer, por exemplo, se haverá uma ordem prioritária de tributos a serem compensados ou como será realizada a escrituração nos livros fiscais do contribuinte.

 

Considerando a natureza vinculada da atividade estatal e a inexistência de normas que regulem a compensação, o aproveitamento de crédito oriundo de precatório judicial a fim de extinguir crédito tributário de ICMS mostrar-se-ia manifestamente ilegal, eis que, não havendo qualquer respaldo normativo, estaria pautada em mero juízo de conveniência e oportunidade.

 

Além de ilegal, a compensação sem previsão legislativa acarretará violação a direitos de terceiros – decorrente da não observância da ordem cronológica de apresentação dos precatórios, como já se advertiu antes –, assim como poderá causar prejuízos diretos à coletividade em função da redução da arrecadação.

 

Importante ressaltar que o direito tributário existe como mera atividade-meio, tendo como função precípua de sua existência a obtenção de receitas para que o Estado possa atender os direitos fundamentais dos particulares e promover a consecução do bem comum. Assim, a autorização indiscriminada da compensação dos precatórios judiciais a fim de excluir créditos tributários, vencidos ou vincendos – com base em norma constitucional carecedora de regulamentação –, tornará inevitável o abalo no atendimento a outras pretensões dos particulares, muitas delas vinculadas à usufruição des direitos fundamentais.

 

Necessária se faz, por evidente, a autuação legislativa infraconstitucional como meio de impor limites ao exercício do direito à compensação, de forma a evitar o comprometimento dos serviços e atividades estatais tidas por essenciais.

 

Enfim, o art. 78 do ADCT traz uma estrutura normativa insuficiente, configurando uma norma de eficácia limitada, que somente atingirá sua plenitude normativa quando devidamente regulada pelos respectivos Estados. A esse respeito, confira-se o seguinte entendimento:

 

(a) a Emenda Constitucional n.º 30/00 apresenta todas as características de uma norma de eficácia limitada, não dispondo de normatividade suficiente para conferir efetividade aos direitos e obrigações por ela mesma instituídos;

 

(b) a atividade da Fazenda Pública é, por força de norma constitucional, vinculada, sendo vedado ao agente público avaliar pleitos relativos à compensação de tributos, sob um juízo de conveniência e oportunidade;

 

(c) não se revela compatível com os princípios, que informam o ordenamento constitucional em vigor, a realização de negociações, caso a caso, pela Administração Pública, para fins de pagamento de precatórios judiciais”.

 

Diante da ausência de legislação estadual para dar efetividade à citada norma constitucional, não há como ser deferido o pedido de compensação.

 

Por último, é relevante registrar que, sobre o tema, pende de julgamento no E. Supremo Tribunal Federal a ADIN n.º 2356, na qual os Ministros Néri da Silveira (relator) e Carlos Ayres Britto votaram pelo deferimento da liminar em ordem a suspender a eficácia do art. 2º da EC n.º 30/00, que introduziu no ADCT o art. 78, já sendo possível antever o resultado a que chegará o referido julgamento.

 

Desrespeito à Ordem Cronológica de Pagamento dos Precatórios

 

Os atos do poder público são pautados por princípios basilares que buscam assegurar valores metaindividuais, que se manifestam como a expressão máxima do direito, traduzidos na promoção do bem estar coletivo e na paz social. Entre esses princípios, está a isonomia.

 

O tratamento isonômico conferido pela Constituição Federal reflete-se, por óbvio, no direito tributário, o qual deverá dispor de meios que vedem o estabelecimento de diferenças entre contribuintes – e entre os administrados de forma geral – que se encontrem em situações equivalentes, com base em arbitrariedades ou em função de condições inerentes às pessoas ou seu status, não sendo por outro motivo que o art. 100 da CF previu, de maneira expressa, a realização dos pagamentos dos precatórios em observância à ordem cronológica de sua apresentação.

 

O Poder Público, diante de tal norma, vê-se obrigado a atendê-la de maneira incondicional, não cabendo ao administrador qualquer juízo de valor ou estabelecimento de outros critérios – mesmo que mais vantajosos ao erário – para o pagamento dos precatórios que não a observância de sua ordem cronológica. Prova disso é a introdução da palavra exclusivamente no corpo do texto constitucional.

 

A obediência ao critério cronológico estabelecido pela Constituição Federal tem por objetivo não só o referido principio da isonomia, mas também a própria moralidade e a impessoalidade. Nos dizeres do Min. Celso de Mello, no julgamento do RE n.º 206.277-4/SP, a observância estrita à ordem cronológica tem por objetivo “impedir favorecimentos pessoais indevidos e frustrar injustas perseguições ditadas por razões de caráter político-administrativo”.

 

Na hipótese em tela, a compensação traduzir-se-ia nada mais do que em uma quebra à ordem de precedência cronológica prevista, com a preterição do credor mais antigo, e, conseqüentemente, uma violação ao art. 100 da CF.

 

Admitir-se o contrário equivaleria a acolher uma inconstitucional escolha de credores pela Fazenda Pública, violando a ordem de precedência cronológica prevista pela norma acima referida.

 

A jurisprudência do E. Supremo Tribunal Federal orienta-se no mesmo sentido da tese aqui alvitrada, conforme demonstra a seguinte decisão:

 

RECLAMAÇÃO – ALEGAÇÃO DE DESRESPEITO A ACÓRDÃO DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL RESULTANTE DE JULGAMENTO PROFERIDO EM SEDE DE CONTROLE NORMATIVO ABSTRATO – INOCORRÊNCIA – SEQUESTRO DE RENDAS PÚBLICAS LEGITIMAMENTE EFETIVADO – MEDIDA CONSTRITIVA EXTRAORDINÁRIA JUSTIFICADA, NO CASO, PELA INVERSÃO DA ORDEM DE PRECEDÊNCIA DE APRESENTAÇÃO E DE PAGAMENTO DE DETERMINADO PRECATÓRIO – IRRELEVÂNCIA DE A PRETERIÇÃO DA ORDEM CRONOLÓGICA, QUE INDEVIDAMENTE BENEFICIOU CREDOR MAIS RECENTE, DECORRER DA CELEBRAÇÃO, POR ESTE, DE ACORDO MAIS FAVORÁVEL AO PODER PÚBLICO – NECESSIDADE DE A ORDEM DE PRECEDÊNCIA SER RIGIDAMENTE RESPEITADA PELO PODER PÚBLICO – SEQUESTRABILIDADE NA HIPOTESE DE INOBSERVANCIA DESSA ORDEM CRONOLÓGICA, DOS VALORES INDEVIDAMENTE PAGOS OU, ATÉ MESMO, DAS PROPRIAS RENDAS PÚBLICAS – RECURSO IMPROVIDO. EFICÁCIA VINCULANTE E FISCALIZAÇÃO NORMATIVA ABSTRATA DE CONSTITUCIONALIDADE – LEGITIMIDADE CONSTITUCIONAL DO ART. 28 DA LEI Nº. 9.868/99.

(…)

Precedente. A SIGNIFICAÇÃO CONSTITUCIONAL DA NECESSIDADE DE EXPEDIÇÃO DOS PRECATÓRIOS JUDICIÁRIOS.

O regime constitucional de execução por quantia certa contra o Poder Público, qualquer que seja a natureza do crédito exeqüendo (RTJ 150/337) – ressalvadas as obrigações definidas em lei como de pequeno valor – impõe a necessária extração de precatório, cujo pagamento deve observar, em obséquio aos princípios ético-juridicos da moralidade, da impessoalidade e da igualdade, a regra fundamental que outorga preferência apenas a quem dispuser de precedência cronológica (prior in tempore, potior in jure). A exigência constitucional pertinente à expedição de precatório – com a consequente obrigação imposta ao Estado de estrita observância da ordem cronológica de apresentação desse instrumento de requisição judicial de pagamento – tem por finalidade (a) assegurar a igualdade entre os credores e proclamar a inafastabilidade do dever estatal de solver os débitos judicialmente reconhecidos em decisão transitada em julgado (RTJ 108/463), (b) impedir favorecimentos pessoais indevidos e (c) frustrar tratamentos discriminatórios, evitando injustas perseguições ou preterições motivadas por razões destituídas de legitimidade jurídica. PODER PÚBLICO – PRECATÓRIO – INOBSERVÂNCIA DA ORDEM CRONOLÓGICA DE SUA APRESENTAÇÃO. – A Constituição da República não quer apenas que a entidade estatal pague os seus débitos judiciais. Mais do que isso, a Lei Fundamental exige que o Poder Público, ao solver a sua obrigação, respeite a ordem de precedência cronológica em que se situam os credores do Estado. – A preterição da ordem de precedência cronológica – considerada a extrema gravidade desse gesto de insubmissão estatal às prescrições da Constituição – configura comportamento institucional que produz, no que concerne aos Prefeitos Municipais, (a) conseqüências de caráter processual (seqüestro da quantia necessária à satisfação do débito, ainda que esse ato extraordinário de constrição judicial incida cobre rendas públicas), (b) efeitos de natureza penal (crime de responsabilidade, punível com pena privativa de liberdade – DL 201/67, art. 1º, XII) e (c) reflexos de índole político-administrativa (possibilidade de intervenção do Estado-membro no Município, sempre que essa medida extraordinária revelar-se essencial à execução de ordem ou decisão emanada do Poder Judiciário – CF, art. 35, IV, in fine).

PAGAMENTO ANTECIPADO DE CREDOR MAIS RECENTE – CELEBRAÇÃO COM ELE, DE ACORDO FORMULADO EM BASES MAIS FAVORÁVEIS AO PODER PÚBLICO – ALEGAÇÃO DE VANTAGEM PARA O ERÁRIO PÚBLICO – QUEBRA DA ORDEM CONSTITUCIONAL DE PRECEDENCIA CRONOLÓGICA – INADMISSIBILIDADE. – O pagamento antecipado de credor mais recente, em detrimento daquele que dispõe de precedência cronológica, não se legitima em face da Constituição, pois representa comportamento estatal infringente da ordem de prioridade temporal, assegurada, de maneira objetiva e impessoal, pela Carta Política, em favor de todos os credores do Estado. O legislador constituinte, ao editar a norma inscrita no art. 100 da Carta Federal, teve por objetivo evitar a escolha de credores pelo Poder Público. Eventual vantagem concedida ao erário público, por credor mais recente, não justifica, para efeito de pagamento antecipado de seu crédito, a quebra da ordem constitucional de precedência cronológica. O pagamento antecipado que daí resulte – exatamente por caracterizar escolha ilegítima de credor – transgride o postulado constitucional que tutela a prioridade cronológica na satisfação dos débitos estatais, autorizando, em consequência – sem prejuízo de outros efeitos de natureza jurídica e de caráter político-administrativo –, a efetivação do ato de seqüestro (RTJ 159/943-945), não obstante o caráter excepcional de que se reveste essa medida de constrição patrimonial. Legitimidade do ato de que ora se reclama. Inocorrência de desrespeito à decisão plenária do Supremo Tribunal Federal proferida na ADI 1.662/SP.”

 

(RE 387.870/SP, rel. Min. Sepúlveda Pertence, j. em 25/06/07) (g.n.).

 

A quebra da ordem cronológica prevista, além de manifestamente inconstitucional, violando os princípios da isonomia, da moralidade, da impessoalidade e a própria segurança jurídica daqueles que aguardam ansiosamente na fila dos precatórios para ver exercido o seu direito, poderá levar, ainda, a conseqüências de ordem econômica e político-administrativa.

 

No aspecto econômico, o art. 100, § 2º, da CF prevê o seqüestro da quantia necessária para a satisfação do débito, a requerimento do credor, nos casos em que este venha a ser ferido em seu direito de preferência[3].

 

A violação à ordem de precedência cronológica dos precatórios caracteriza, ainda, comportamento institucional que poderá levar a conseqüências de ordem político-administrativa, com a possibilidade de intervenção federal nos casos em que esta medida se tornar indispensável para o cumprimento de ordem ou decisão emanada pelo Poder Judiciário, conforme prevê o art. 34, inciso VI, da CF[4].

 

É notório que as finanças dos Estados são combalidas e que o atraso no pagamento por ente público, por força de dificuldade financeira, não seria suficiente para ensejar uma intervenção federal. Entretanto, havendo recursos financeiros, os precatórios deverão ser liquidados pelo respectivo ente estatal com respeito absoluto à ordem de precedência cronológica de sua apresentação, conforme dispõe o referido art. 100 da CF.

[1]Art. 170. A lei pode, nas condições e sob as garantias que estipular, ou cuja estipulação em cada caso atribuir à autoridade administrativa, autorizar a compensação de créditos tributários com créditos líquidos e certos, vencidos ou vincendos, do sujeito passivo contra a Fazenda Pública.” (g.n.)

[2]Art. 190. É facultado ao Poder Executivo, mediante as condições e garantias que estipular para cada caso, através de legislação especial, efetuar a compensação de créditos tributários com créditos líquidos e certos, vencidos ou vincendos, do sujeito passivo contra a Fazenda Estadual.” (g.n.)

[3]§ 2º As dotações orçamentárias e os créditos abertos serão consignados diretamente ao Poder Judiciário, cabendo ao Presidente do Tribunal que proferir a decisão exequenda determinar o pagamento segundo as possibilidades do depósito, e autorizar, a requerimento do credor, e exclusivamente para o caso de preterimento de seu direito de precedência, o sequestro da quantia necessária à satisfação do débito.” (g.n.)

[4] “Art. 34. A União não intervirá nos Estados nem no Distrito Federal, exceto para: (…) VI – prover a execução de lei federal, ordem ou decisão judicial;”


Que se resolvam com as Financeiras

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O CNJ divulgou em sua página oficial na internet, em 04/05/2011, a fabulosa notícia de que as dívidas judiciais em breve poderão ser pagas com cartões de crédito. A louvável iniciativa, segundo o Conselho Nacional de Justiça, visa permitir a utilização dos meios eletrônicos de pagamento no âmbito do Poder Judiciário, além de ter custo zero e abreviar sobremaneira o processo de execução, incentivando, ainda, as conciliações durante as audiências.

 

De acordo com aquela Instituição, a idéia é possibilitar ao devedor o parcelamento do valor devido, e garantir que o credor receba esse valor com maior facilidade, já que o pagamento integral será feito pela Administradora do cartão de crédito.

 

Em tese, ganhariam os três: o devedor, que pagaria seu débito de forma parcelada; o credor, que o receberia integralmente e com maior facilidade; e a Administradora do cartão de crédito, que lucraria ainda mais com os juros remuneratórios que perceberia em razão dos inúmeros financiamentos.

 

Na prática, para credor e devedor a iniciativa seria espetacular. Para as Administradoras de Cartão de Crédito, entretanto, apesar do inegável superávit que acometeria sua atividade comercial, a “facilidade”, em contrapartida, pode representar o aumento da inadimplência, e a propositura de incontáveis ações no Judiciário. Tanto de Cobrança, quanto Revisionais de taxa de juros e outros encargos, que já integram as razões para o acúmulo de demandas nos juízos de 1º grau e Tribunais Superiores.

 

São incontáveis as ações propostas com a finalidade de rever cláusulas de contratos de cartão de crédito que dispõem sobre taxa de juros remuneratórios e seu método de cobrança.

 

E a “banalização das revisionais”, como mencionam diversos juristas e doutrinadores em obras invariavelmente publicadas, fomenta a propositura de mais ações da mesma espécie por clientes que utilizam os serviços de Administradoras de cartão de crédito, tendo pagado pouquíssimas parcelas do financiamento ou, em alguns casos, nem mesmo uma das parcelas, tornando o contrato excessivamente oneroso para os Bancos, ao contrário do que costumam fundamentar em suas demandas.

 

Sob a ótica das Instituições Financeiras, ainda que se enxergue lucro com o advento dos pagamentos de débitos judiciais mediante a utilização de cartões de crédito, o excesso de demandas judiciais contrárias, além de arranhar sua imagem, diminuem essa percentagem lucrativa, na medida em que são altos os custos de manutenção dessas ações, que culminam no pagamento de condenações, honorários advocatícios, custas e outras despesas processuais.

 

Do outro lado da moeda, a iniciativa do CNJ, embora admirável, pois visa dar maior efetividade às decisões judiciais, num futuro não muito distante, traria enorme prejuízo aos Jurisdicionados em geral, em razão da sobrecarga do Judiciário, com a conseqüente demora na prestação da tutela jurisdicional, cuja celeridade é o grande anseio da sociedade brasileira contemporânea, sendo este, inclusive, o principal pilar da iminente reforma do Código de Processo Civil.

 

Ademais, permitir o pagamento de débitos judiciais com o cartão de crédito, na maioria dos casos, como resta estatisticamente comprovado, apenas transferirá para a Instituição Financeira o inadimplemento que o devedor teria com o credor, com o agravante de que o banco necessitaria de todo um processo de conhecimento para eventualmente satisfazer seu crédito.

 

Neste desiderato, apesar de nobre a iniciativa do Conselho Nacional de Justiça, sendo certo que almeja dar maior efetividade às decisões judiciais, na medida em que proporcionará a satisfação do crédito declarado no título executivo, não é a melhor solução para o problema, pois, com uma só “cajadada”, transferirá o ônus do inadimplemento do devedor para as administradoras de cartões de crédito, e de quebra, contribuirá para o considerável aumento das ações revisionais propostas pelos devedores dos cartões de crédito, sobrecarregando ainda mais o Judiciário Nacional, prejudicando aos jurisdicionados em geral, que sonham com a prestação da tutela jurisdicional do Estado de maneira mais abreviada, como lhe garante a Constituição Federal.

Enfim, para evitar que “pipoquem” as demandas revisionais, em razão da nova modalidade de cumprimento de obrigações pecuniárias judiciais, o Conselho Nacional de Justiça deverá criar mecanismos que atestem, no ato do indigitado pagamento, a concordância do usuário do cartão de crédito quanto às taxas de juros e demais encargos incidentes sobre a operação em questão, impedindo que este último procure o judiciário posteriormente para questioná-las.

 

Agindo assim, o CNJ terá encontrado a melhor solução para credor, devedor, Administradora de Cartão de Crédito, e para o jurisdicionado em geral, que não sofrerá, ainda mais, com o excesso de demandas propostas, e a sobrecarga do Judiciário que faz com que as ações levem anos para terem um desfecho, muitas das vezes esvaziando-as de sua finalidade.

 

 

 

 


Cobrança de comissão de corretagem

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A questão que merece nossa atenção neste momento envolve prática costumeira nas transações de imóveis, principalmente aqueles negociados ainda na planta pelas incorporadoras, antes, portanto, de estarem construídos.

 

Quando da celebração do Instrumento Particular de Recibo de Sinal e Princípio de Pagamento, tem sido praxe as construtoras exigirem dos compradores a emissão de, ao menos, dois cheques, sendo um referente ao sinal propriamente dito, e outro representativo da comissão de corretagem, a ser repassado aos presumíveis intermediadores do negócio.

 

Enfim, o próprio vendedor repassa ao corretor contratado para intermediar a transação, no mesmo momento em que recebe o sinal de pagamento, parte do crédito recebido do comprador, a fim de evitar que tenha de emitir nova ordem de pagamento para aquele.

 

Como isso é apenas uma forma de desburocratizar o procedimento, naturalmente que não produz qualquer reflexo sobre o preço do negócio, que posteriormente é escriturado com alusão ao valor que efetivamente foi pago. Ocorre que muitas vezes não é isso que se verifica.

 

Imagine-se, por exemplo, que na Escritura de Promessa de Compra e Venda conste o valor de R$ 290.000,00, enquanto que no Instrumento Particular de Recibo de Sinal e Princípio de Pagamento haja sido mencionado o valor de R$ 300.000,00. Nesse caso, facilmente se percebe que o valor de R$ 9.000,00 não compunha efetivamente o preço do imóvel, senão que apenas representava a comissão de corretagem que, a rigor, deveria ser arcada pelo vendedor, mas cujo pagamento foi sorrateiramente repassado ao comprador, sem a devida transparência.

 

O comprador, nesse particular, é iludido pelo vendedor, por acreditar que o valor de R$ 9.000,00 – que acabou sendo repassado ao corretor –, efetivamente correspondia à parte do preço do imóvel, o que, todavia, não ocorria, já que, do contrário, a Escritura de Promessa de Compra e Venda assinalaria o mesmo valor indicado no Instrumento Particular (R$ 300.000,00), e não a diferença entre este e o valor da comissão. Essa prática demonstra que, na realidade, o preço do imóvel efetivamente era aquele que constava da Escritura, e não o que constou no Instrumento Particular.

 

Conclui-se dessa exposição que o vendedor, embora originalmente obrigado a arcar com o pagamento da comissão de corretagem, acaba imputando o encargo ao comprador, que normalmente não se dá conta de que está assumindo o pagamento de uma obrigação que na verdade tocava àquele.

 

Tratando-se o valor de verba atinente à comissão de corretagem, seu pagamento dever ser arcado pelo vendedor, e não pelo comprador, consoante já iterativas vezes decididos pelos tribunais, in verbis:

 

DIREITO CIVIL. CORRETAGEM DE IMÓVEL. INEXISTÊNCIA DE CONTRATO ESCRITO. AUSÊNCIA DE PROVA DE EXCLUSIVIDADE E DE QUE O NEGÓCIO SE REALIZOU EM RAZÃO DA INTERMEDIAÇÃO. PRETENSÃO QUE DEVE SE VOLTAR CONTRA O PROPRIETÁRIO DO IMÓVEL E NÃO CONTRA O COMPRADOR. O contrato de corretagem de imóveis é firmado, na maioria dos casos, entre o proprietário e o corretor, cabendo àquele o pagamento de comissão pelo sucesso da intermediação. Se não existe contrato e, em conseqüência, não se pode exigir exclusividade, não há óbice para que o negócio se realize diretamente entre o comprador e o vendedor. Se o corretor entende ser devida a comissão, deve dirigir sua pretensão em face do vendedor e não do comprador. Conjunto probatório nos autos que não favorecem a tese autoral. Reforma da sentença. Conhecimento e provimento do recurso.” (TJRJ, Ap. 0096205-11.2008.8.19.0001 (2009.001.68263), 9ª Câmara Cível, rel. Desembargador Rogério de Oliveira Souza, j. 15/12/2009) (g.n.).

 

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Direito Civil. Rescisão Contratual anulação de ato jurídico. Comissão de corretagem. Não há nos autos prova de que o autor tenha feito o pagamento respectivo. A corretagem é despesa do vendedor. Possibilidade da multa de retenção de acordo com cláusula contratual. Recurso parcialmente provido.” (TJRJ, Ap. 0010430-54.2006.8.19.0209 (2008.001.47964), 9ª Câmara Cível, rel. Desembargador Sergio Jeronimo A. Silveira, j. 28/10/2008) (g.n.).

 

***

 

PROCEDIMENTO SUMÁRIO. AÇÃO DE COBRANÇA. MEDIAÇÃO OU CORRETAGEM NA VENDA DE IMÓVEL. SERVIÇOS COMPROVADAMENTE PRESTADOS. COMISSÃO DEVIDA PELO PROPRIETÁRIO-VENDEDOR. SENTENÇA CORRETA. RECURSO DESPROVIDO. Tratando-se de mediação ou corretagem para fins de venda de imóvel, e restando comprovada a efetiva prestação desses serviços pela empresa corretora que aproximou os interessados, impõe-se ao proprietário-vendedor o pagamento da comissão devida e ajustada.” (TJRJ, Ap. 0158034-95.2005.8.19.0001 (2007.001.01006), 3ª Câmara Cível, rel. Desembargador Antonio Eduardo F. Duarte, j. 03/07/2007) (g.n.).

 

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Ação de procedimento sumário. Cobrança de comissão de corretagem aos adquirentes do imóvel. A regra é o pagamento pelo vendedor. Ausência de comprovação de que a venda tivesse ocorrido por intermediação do autor. A presunção de veracidade dos fatos alegados decorrente da revelia pode ser afastada pela prova colhida. Provimento dos recursos.” (TJRJ, Ap. 0131849-88.2003.8.19.0001 (2006.001.34551), 1ª Câmara Cível, rel. Desembargadora Valeria Maron, j. 13/09/2006 (g.n.).

 

Diante dessas considerações, aquele comprador que se veja nessa situação pode pleitear tanto do vendedor quando do corretor a devolução do valor pago, até mesmo em dobro, como autoriza o art. 42, parágrafo único, do Código de Defesa do Consumidor, em ação que pode ser proposta perante o Juizado Especial Cível.

 

Foi assim que recentemente decidiu a 1ª Turma Recursal dos Juizados Especiais Cíveis do Rio de Janeiro nos autos da ação de n.º Processo nº 0143334-41.2010.8.19.0001, condenando as empresas vendedora e a responsável pela intermediação a pagarem, de forma solidária – porque seriam parceiros comerciais no negócio celebrado – indenização a uma consumidora a título de dobra dos valores indevidamente cobrados e pagos pela comissão de corretagem referente à venda do imóvel por ela adquirido.

As duas empresas foram condenadas justamente por terem transferido, de forma ilícita, a comissão de corretagem do imóvel para a consumidora. Os juízes consideraram que as cobranças e o pagamento eram indevidos porque o corretor estava a serviço do vendedor do imóvel, além do fato de que o corretor não foi contratado nem estava a serviço da consumidora, bem como que o valor da comissão não foi expressamente aceito por ela.

 

A condenação foi fundamentada da seguinte forma: “O pagamento da comissão de corretagem incumbe de ordinário ao vendedor, no caso a incorporadora, o que reforça a conclusão de que a transferência dessa obrigação ao consumidor deve ser levada a efeito com o cuidado necessário para que a manifestação de vontade da parte hipossuficiente não se revista de vício. Assim, e também por força do princípio da boa-fé objetiva, os pagamentos questionados pela autora, para que se pudessem se considerar legítimos, deveriam ser contratados de maneira completamente transparente, o que, não foi feito“.

 

Em suma, mostra-se lícito repassar ao comprador o pagamento da comissão de corretagem, mas desde que haja transparência nessa estipulação, de modo a que ele tenha o exato conhecimento da obrigação assumida. Na hipótese em que a obrigação for transferida de maneira velada, o comprador passa a ter o direito de cobrar a restituição, em dobro, tanto do vendedor quanto do corretor.

 

 

 


O Dano moral imoral

Artigos


A doutrina e a jurisprudência dominante sobre o tema tem admitido ao longo do tempo que a indenização por violação tanto a amoral subjetiva tanto à objetiva pode ter um caráter pedagógico punitivo no sentido não de reparar qualquer lesão mas de punir o recalcitrante pela lesão que o mesmo veio a cometer desestimulando-o a continuar assim agindo.

Nesse breve ensaio, iremos defender que indenizar uma lesão que não existe, no caso a lesão moral, apenas para punir o pretenso e hipotético ofensor traduz uma postura que pode ser caracterizada como imoral, já que o valor arbitrado para tal objetivo não é depositado em prol do Estado ou num fundo especial, mas sim é remetido para “o bolso do ofendido”, que não precisa ser indenizado, para tal escopo.

Nesse viés, indenizar aquele que nada tem a ser indenizado apenas para punir, ainda que sob a justificativa de representar uma postura pedagógica significa “aquecer”, o mercado do dano moral, alem de transgredir preceitos processuais consagrados em nosso ordenamento jurídico.

Tal se afirma, tendo em vista falecer legitimamente ao demandante para postular a condenação do réu e em prol de terceiros, a quem não representa, o que iria acontecer com a fixação de uma singela multa para ser paga por aquele que tivesse cometido alguma postura que a luz do Judiciário merecesse reprimenda.

A rigor, apenas poderia vindicar a exasperação da indenização caso argumentasse não sê-la bastante para reparar o prejuízo alegado, mas jamais poderá buscar do Poder Judiciário uma condenação para que o réu não viesse, imaginariamente, a reproduzir a conduta inquinada de ilícita e danosa frente a outros.

Tratando-se de lide sobre direito eminentemente individual, ao demandante é vedado procurar emprestar á sentença uma dimensão difusa, com projeção de efeitos positivos no patrimônio jurídico de sujeitos que não integram a relação processual.

Como bem sinalizado pela doutrina pátria, art. 6º do Código de Processo Civil congrega a legitimação para a causa e a legitimação para o processo, de modo a somente poder ser a parte da demanda aquele que seja também o titular da pretensão deduzida em juízo. Em outras palavras, em sede de litígio individual, ninguém poderá formular pedido que vise a satisfazer uma determinada pretensão de terceiro, titular do direito material próprio.

Diferentemente ocorre com as demandas que envolvam direitos difusos lato sensu, pertencentes a todos, mas que não são públicos, no sentido tradicional do vocabulário.São, em verdade, transindividuais ou metaindividuais, “derivados da massificação da vida em sociedade e do surgimento de novas “modalidades” de conflitos, relativamente aos quais o sistema processual centrado na iniciativa do titular do direito subjetivo não tem como fornecer respostas eficazes.

Pois bem, resgatando o pensamento que deu origem a este ensaio, pode-se asseverar que o titular de direito material, quando postular individualmente em juízo, devera se limitar a reparação do prejuízo que alegue ter experimentado, sem interferir na relação que o causador do dano tenha com outros sujeitos que não sejam parte da demanda.

Se ao demandante está vedado invocar a tutela jurisdicional relativamente a direitos de que não seja titular (salvo as exceções legais), e o juiz não pode de outro lado, decidir a lide  ultrapassando dos limites em que foi proposta,  não poderá de igual sorte impingir do demandado condenação de matiz punitivo com o escopo de evitar que o mesmo venha a ter idêntico comportamento, tido por indevido, frente a outros sujeitos que não integram o núcleo social.

Arriscando um avanço em tão tormentosa questão, não nos afiguraria incorreto dizer que também faltaria o interesse de agir ao litigante individual, tendo em vista que nada lhe aproveitará a condenação do réu para que não mais venha a praticar determinados atos frente a outros sujeitos que se encontrem em igual situação, o que corrobora o entendimento de ser-lhe vedado formular pedidos de tal natureza.

Por ultimo, não se olvide que o art. 402 da lei substantiva civil condiciona a indenização à reparação (no caso, compensação), pelos prejuízos efetivos e os lucros cessantes por efeito direto e imediato da lesão, pelo que não seria licito deferir-se majoração da verba compensatória, conferindo-lhe jaez de multa, que como esposado em tópico próprio, não encontra esteio em qualquer disposição do ordenamento jurídico.

Quer-nos parecer que a defesa da moral é um valor dos mais caros ao ordenamento jurídico, e que encontra-se hospedado no texto fundante republicano, mas tal meta não pode ser atendida com a imposição de punições pecuniárias que busquem indenizar direitos que , de fato, não foram sequer violados, pois ai incorreríamos num grave equivoco de promover a imoralidade para proteger o valor da moral o que, a todas as luzes o presente artigo busca alertar como medida de necessária reflexão para o amadurecimento do posicionamento até então majoritário a respeito do tema.