O artigo na íntegra também está no site do Conjur e pode ser acessado aqui.
Há muito se discute sobre as — até então — malfadadas tentativas de reforma tributária que têm como “slogan” a redistribuição equânime dos encargos tributários dentre os diversos segmentos da sociedade civil.
Todavia, o objetivo da presente reflexão não será a análise crítica das Propostas de Emenda à Constituição (PEC) da Reforma Tributária, mas a análise de dispositivo legal que — na visão do Fisco — impede empresas do Simples Nacional de se valerem de benefícios fiscais, notadamente daqueles relacionados ao Programa Emergencial de Retomada do Setor de Eventos (Perse), instituído pela Lei 14.148 de 2021.
Por meio desse programa, ficou autorizado, além de outros benefícios, a transação de débitos federais com desconto de até 70% sobre o valor total da dívida e quitação em até 145 parcelas, e a redução a 0%, pelo prazo de 60 meses, das alíquotas do IRPJ, da CSLL, do PIS e da Cofins para as empresas aderentes.
A supracitada legislação nasceu da indiscutível necessidade de apoio ao setor de entretenimento, hotelaria e turismo, severamente impactado pelas restrições impostas pela pandemia da Covid-19.
Todavia, não obstante a nobreza em se identificar as necessidades do setor, criando-se, para ele, um regime todo especial de retomada econômica, vê-se que sua aplicação se restringe às empresas que apuram o IRPJ e a CSLL pela sistemática do lucro real, presumido ou arbitrado, sendo vedado o aproveitamento do Perse por aquelas optantes pelo Simples Nacional.
Em uma primeira análise, poder-se-ia concluir pela ausência de impedimento, uma vez que não estabeleceu a Lei nº 14.148/2021 nenhuma vedação nesse sentido. Quem o fez foi a Receita Federal quando da regulamentação da referida norma por meio da IN 2.114/2022, deixando claro e expresso, no parágrafo único do artigo 4º, que “o benefício fiscal não se aplica às pessoas jurídicas tributadas pela sistemática do Regime Especial Unificado de Arrecadação de Tributos e Contribuições devidos pelas Microempresas e Empresas de Pequeno Porte (Simples Nacional), de que trata a Lei Complementar nº 123, de 14 de dezembro de 2006“.
O comando advém do próprio estatuto da microempresa e da empresa de pequeno porte, bem como do regime jurídico-tributário a ele aplicável. O artigo 24 da Lei Complementar 123/2006 dispõe que referidas empresas, optantes pelo Simples Nacional “não poderão utilizar ou destinar qualquer valor a título de incentivo fiscal”, o que inclui “quaisquer alterações em bases de cálculo, alíquotas e percentuais ou outros fatores que alterem o valor de imposto ou contribuição apurado na forma do Simples Nacional (…)” (§1º).
Ou seja, por meio da “cola” às disposições contidas no estatuto da microempresa e da empresa de pequeno porte, entende a Receita Federal que as empresas optantes pelo regime de tributação simplificada estariam impedidas de usufruírem das vantagens trazidas pelo Perse.
Aqui um pequeno parêntese sobre essa absolutez na vedação de benefícios fiscais às empresas optantes pelo Simples Nacional. O comando contido no artigo 24 caput e §1º da Lei Complementar 123/2006 é de literalidade inquestionável, e não parece fazer qualquer tipo de distinção a que tipo de benefício fiscal seria vedado.
Todo e qualquer benefício fiscal, relacionado aos tributos abrangidos pelo recolhimento unificado no âmbito do Simples Nacional, que altere base de cálculo, alíquota ou valor, parecem ser proibidos a quem já tem a seu favor tratamento diferenciado instituído por lei, com alíquotas menores e obrigações acessórias simplificadas.
Contudo, o próprio Comitê Gestor do Simples Nacional, órgão federal que tem por finalidade regulamentar os aspectos tributários aplicáveis às microempresas e às empresas de pequeno porte, ao fazê-lo por meio da Resolução CGSN 140/2018, autorizou que estados e municípios, via atos administrativos próprios, concedam benefícios e incentivos fiscais que importem isenção, redução ou a atribuição de valores fixos para recolhimento do ICMS e do ISS. Ou seja, trata-se de vedação que comporta exceções, no que parece respeitar a autonomia federativa.
Retornemos à questão da literalidade do dispositivo vedatório. Se somente essa forma de interpretação normativa fosse considerada, ignorando-se outros importantes métodos de interpretação e a própria situação excepcional do período pandêmico, qualquer um chegaria à mesma conclusão, a nosso ver, equivocada.
O consagrado efeito irradiante das normas constitucionais impõe que todos os normativos que compõem o ordenamento jurídico brasileiro — inclusive o § 1º do artigo 24 da Lei Complementar 123/2006 — sejam interpretados à luz da Constituição Federal.
Resta-nos, portanto, investigar se a referida vedação estaria em sintonia com os preceitos constitucionais, mesmo diante da excepcionalidade jurídico-econômico-social causada pela crise mundial pós-pandemia.
A resposta de antemão é, em nossa visão, negativa.
Pois bem. Nossa Carta Magna, ao tratar dos princípios que norteiam a ordem econômica, estabeleceu, no inciso IX de seu artigo 170, o “tratamento favorecido para as empresas de pequeno porte constituídas sob as leis brasileiras e que tenham sua sede e administração no País”.
Há quem diga que o constituinte se esqueceu de incluir a microempresa, mas lembremos dela aqui, sobretudo porque, ao se falar em tributação simplificada, é impossível desassociar as duas figuras empresariais, que não obstante se inserirem conceitualmente em faixas diversas de receita bruta anual, estão sujeitas ao mesmo estatuto e aos mesmos tratamentos diferenciados e favorecidos, incluindo-se os de natureza tributária.
A esse respeito, frisa-se que o tratamento diferenciado a elas aplicado para fins tributários, materializado no regime unificado de recolhimento de impostos e contribuições da União, dos estados, do Distrito Federal e dos municípios (Simples Nacional), surgiu justamente com o objetivo de minimizar a desigualdade contributiva entre as empresas e de fomentar o desenvolvimento nacional.
Inegável, pois, que tributar empresa com faturamento milionário da mesma forma que empresa com diminuta capacidade contributiva é colocar em xeque o Princípio da Igualdade Material.
Inclusive, é possível fixar a premissa de que “(…)capacidade contributiva é, na verdade, um critério de aplicação da igualdade (…)” [1]. A igualdade material, buscada pelo Simples Nacional pode ser vista, portanto, como a exteriorização do Princípio da Igualdade, direito fundamental estabelecido no caput do artigo 5º da Constituição Federal.
Neste nível de reflexão, já seria possível identificar razões suficientemente consistentes para, com base no ideal buscado pelo Princípio da Igualdade e da Capacidade Contributiva, se afastar a restrição legal aplicável ao Perse e à sua fruição pelas empresas optantes pelo regime simplificado de tributação.
Estar-se-ia beneficiando, com vantagens no pagamento de dívidas tributárias e redução a zero das alíquotas dos impostos incidentes sobre lucro/renda e faturamento, empresas de grande porte (com elevada capacidade contributiva), em detrimento das pequenas empresas (com ínfima capacidade contributiva), reforçando ainda mais o desequilíbrio concorrencial entre elas.
O questionamento é salutar:
- Microempresas e Empresas de Pequeno Porte também não sofreram as restrições impostas pela pandemia? Estas restrições, não foram a elas ainda mais nefastas?
- Se tanto as grandes, médias e pequenas empresas foram afetadas pelas restrições pandêmicas, qual a justificativa em não se permitir que as últimas também sejam beneficiárias do Perse? Um comando legal interpretado de forma isolada e literal?
Ainda que o comando restritivo analisado possa ser considerado, em “condições normais de temperatura e pressão”, constitucional em seu aspecto material, a mesma conclusão não pode ser obtida no contexto pós-pandemia e de retomada do crescimento econômico.
Esse fenômeno de inconstitucionalidade presente no contexto de uma situação excepcionalíssima é denominado pela doutrina constitucionalista de “inconstitucionalidade circunstancial”. Neste contexto, explana Barcellos (2005, pp. 231,232) [2]:
“Trata-se da declaração de inconstitucionalidade da norma produzida pela incidência da regra sobre uma determinada situação específica.
[…] É possível cogitar de situações nas quais um enunciado normativo, válido em tese e na maior parte de suas incidências, ao ser confrontado com determinadas circunstâncias concretas, produz uma norma inconstitucional. Lembre-se que, em função da complexidade dos efeitos que se pretendem produzir e/ou da multiplicidade de circunstâncias de fato sobre as quais incidem, também as regras podem justificar diferentes condutas que, por sua vez, vão dar conteúdo a normas diversas.
Cada uma dessas normas opera em um ambiente fático próprio e poderá ser confrontada com um conjunto específico de outras incidências normativas, justificadas por enunciados diversos. Por isso, não é de estranhar que determinadas normas possam ser inconstitucionais em função desse seu contexto particular, a despeito da validade geral do enunciado do qual derivam.”
No caso concreto, a inconstitucionalidade circunstancial se traduz na existência de um comando legal que, em razão de situação de calamidade pública reconhecida por norma federal, torna-o frágil sob o aspecto constitucional.
A vedação à fruição de quaisquer benefícios fiscais pelas empresas optantes pelo Simples Nacional, notadamente daqueles trazidos pelo Perse, se faz inconstitucional à circunstância da interrupção das atividades imposta pela pandemia da Covid-19 ao setor de turismo, hoteleiro e de entretenimento.
Sob esse aspecto, há grave violação ao Princípio da Igualdade Material, sobretudo se os efeitos da pandemia às micro e pequenas empresas do setor de eventos for considerado de forma individualizada, levando-se em consideração o faturamento dessas empresas em condições econômicas normais, e a capacidade de manutenção de seu ciclo operacional e de suas reservas financeiras em circunstância adversa, tal como a pandemia.
Ainda que o Supremo Tribunal Federal, ao julgar Agravo Regimental no Recurso Extraordinário nº 631.641, tenha proferido entendimento de que “é inviável ao Poder Judiciário, com fundamento em ofensa ao princípio da isonomia, afastar limitação para concessão de benesse fiscal, de sorte a alcançar contribuinte não contemplado na legislação aplicável (…)“, essa conclusão é veementemente questionada pela doutrina. Ao analisar o acórdão, Leandro Paulsen criticou [3]:
“Com isso, o Judiciário acabou por deixar de oferecer prestação jurisdicional que assegurasse tratamento isonômico, razão pela qual tem sido cada vez mais criticada tal posição, havendo quem diga que ‘equivale a eliminar o princípio da igualdade.”
Por outro lado, o próprio Supremo Tribunal Federal, em outro julgamento, o da ADI 6.357/DF, se amparou na teoria da inconstitucionalidade circunstancial para conceder medida cautelar a fim de suspender a aplicação de dispositivos estabelecidos na Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) e na Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO), também no contexto adverso trazido pela pandemia. Em seu voto, o ministro Alexandre de Moraes fez questão de esclarecer que:
“o surgimento da pandemia de Covid-19 representa uma condição superveniente absolutamente imprevisível e de consequências gravíssimas”, razão pela qual estaria justificada a “temporariedade da não incidência dos artigos 14, 16, 17 e 24 da LRF e 114, caput, in fine, e § 14, da LDO/2020 durante a manutenção do estado de calamidade pública”.
A aplicação do § 1º do artigo 24 da Lei Complementar 123/2006 de forma cega e destacada da realidade econômica a que todas as empresas brasileiras foram expostas durante a pandemia da Covid-19 retira, da Constituição Federal, pela via reflexa, sua máxima eficácia social.
Não obstante o acaloramento da discussão nos tribunais pátrios, ainda que sob viés diverso (mais focado em questões procedimentais e ao cumprimento de requisitos práticos para adesão aos benefícios do Perse), e com algum ganho de causa mapeado em favor dos contribuintes, merece o assunto ser discutido em sede de controle difuso ou concentrado de constitucionalidade, sob a ótica da aplicabilidade da inconstitucionalidade circunstancial, a fim de se fazer com que haja pronunciamento definitivo acerca do tema.
[1] Dessa forma entende Roque Carrazza, Misabel Derzi, Pedro Manuel Herrera Molina, Diego Marin-Barnuevo Fabo e Barros Carvalho. ROQUE ANTONIO CARRAZZA, Curso…, op. cit., p. 81; MISABEL DE ABREU MACHADO DERZI, Notas…, op. cit., p. 536; PEDRO MANUEL HERRERA MOLINA, Capacidad econômica…, op. cit., p. 84, 87-88; DIEGO MARIN-BARNUEVO FABO, La protección del mínimo existencial en el âmbito del I.R.P.F., p. 14; PAULO DE BARROS CARVALHO, Curso…, op. cit., p. 174. Dentre os que pensam de maneira diversa, no sentido de que a capacidade contributiva advém da ordem natural das coisas, sendo algo diverso da igualdade, cita-se o seguinte exemplo: LUCIANO AMARO, Direito Tributário…, op. cit., p. 138 e 140.
[2] Barcellos, A. P. (2005). Ponderação, racionalidade e atividade jurisdicional. Rio de Janeiro: Renovar.
[3] PAULSEN, Leandro. Curso de Direito Tributário. 6ª edição. Porto Alegre: Editora Livraria do Advogado, 2014, p. 74.
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