O desinteresse do Ministério Público do Trabalho em ação declaratória de quitação de verbas devidas em virtude de extinção parcial de sociedade


É sabido que tanto o Código Civil (artigo 966, parágrafo único[1]) como o Regulamento Geral do Estatuto da Advocacia e da OAB[2], aprovado pelo Conselho Federal em 06 de novembro de 1994, e os Provimentos n.º 112[3] e 169[4] da referida entidade, de 10 de setembro de 2006 e de 02 de dezembro de 2015, permitem a formação de sociedade civil de cunho intelectual em que os sócios, todos advogados, se reúnem para a prestação de serviços intelectuais na área do Direito.

Desta forma, nestas sociedades, por não haver entre os sócios e o escritório de advocacia nenhuma relação trabalhista, qualquer cizânia entre os mesmos deveria ser dirimida perante a Justiça Comum, por se tratar de causa exclusivamente societária e/ou indenizatória. É que se o advogado opta em fazer parte de uma sociedade na qualidade de sócio, e não de empregado, com vistas às benesses que tal posição proporciona (como, por exemplo, participação na distribuição de lucros e ausência de controle de horário e de exclusividade na prestação de serviços), não pode, depois, tentar descaracterizar a relação societária a fim de forjar uma relação empregatícia que nunca existiu.

Em que pese a lógica acima, já se tornou prática comum no ramo jurídico a aventura jurídica no que tange ao ajuizamento de reclamações trabalhistas com o fito de receber verbas em relação às quais os sócios não possuem qualquer direito. Trata-se, por óbvio, de típico caso de enriquecimento ilícito, visto que há claro aumento patrimonial de um, em detrimento de outro, sem causa jurídica que o justifique, dada a inexistência de relação trabalhista. O questionamento que se faz é simples: como pode uma mesma pessoa pretender receber verbas trabalhistas quando já auferiu montante referente à mesma atividade, só que em posição de sócio?

Neste cenário, um escritório de advocacia ajuizou ação declaratória de quitação de verbas devidas em virtude de extinção parcial de sociedade advocatícia cumulada com reparação de danos em face de ex-sócio que, ao retirar-se da sociedade advocatícia, ajuizou reclamação trabalhista almejando o reconhecimento de vínculo trabalhista, apesar de ter figurado, por vontade própria, por mais de quatro anos, como sócio de serviço da mesma. A reclamação trabalhista, por óbvio, foi julgada improcedente[5], mas causou, por suas declarações falsas, prejuízos enormes à imagem do escritório não apenas perante os integrantes da sociedade, como também perante seus clientes.

O mais espantoso de tudo é que na ação declaratória supracitada o Ministério Público do Trabalho chegou a apresentar pedido de intervenção como assistente litisconsorcial do réu, ex-sócio, como se ele tivesse legitimidade para figurar em uma ação em que contendem um escritório de advocacia e um ex-sócio seu. Seria um absurdo admitir sua intervenção em demanda que está claramente fora de suas atribuições legais, como se pode extrair da simples leitura do artigo 83 da Lei Complementar n.º 75/93, que dispõe sobre a organização, as atribuições e o estatuto do Ministério Público da União:

“ Art. 83. Compete ao Ministério Público do Trabalho o exercício das seguintes atribuições junto aos órgãos da Justiça do Trabalho:

        I – promover as ações que lhe sejam atribuídas pela Constituição Federal e pelas leis trabalhistas;

        II – manifestar-se em qualquer fase do processo trabalhista, acolhendo solicitação do juiz ou por sua iniciativa, quando entender existente interesse público que justifique a intervenção;

        III – promover a ação civil pública no âmbito da Justiça do Trabalho, para defesa de interesses coletivos, quando desrespeitados os direitos sociais constitucionalmente garantidos;

        IV – propor as ações cabíveis para declaração de nulidade de cláusula de contrato, acordo coletivo ou convenção coletiva que viole as liberdades individuais ou coletivas ou os direitos individuais indisponíveis dos trabalhadores;

        V – propor as ações necessárias à defesa dos direitos e interesses dos menores, incapazes e índios, decorrentes das relações de trabalho;

        VI – recorrer das decisões da Justiça do Trabalho, quando entender necessário, tanto nos processos em que for parte, como naqueles em que oficiar como fiscal da lei, bem como pedir revisão dos Enunciados da Súmula de Jurisprudência do Tribunal Superior do Trabalho;

        VII – funcionar nas sessões dos Tribunais Trabalhistas, manifestando-se verbalmente sobre a matéria em debate, sempre que entender necessário, sendo-lhe assegurado o direito de vista dos processos em julgamento, podendo solicitar as requisições e diligências que julgar convenientes;

        VIII – instaurar instância em caso de greve, quando a defesa da ordem jurídica ou o interesse público assim o exigir;

        IX – promover ou participar da instrução e conciliação em dissídios decorrentes da paralisação de serviços de qualquer natureza, oficiando obrigatoriamente nos processos, manifestando sua concordância ou discordância, em eventuais acordos firmados antes da homologação, resguardado o direito de recorrer em caso de violação à lei e à Constituição Federal;

        X – promover mandado de injunção, quando a competência for da Justiça do Trabalho;

        XI – atuar como árbitro, se assim for solicitado pelas partes, nos dissídios de competência da Justiça do Trabalho;

        XII – requerer as diligências que julgar convenientes para o correto andamento dos processos e para a melhor solução das lides trabalhistas;

        XIII – intervir obrigatoriamente em todos os feitos nos segundo e terceiro graus de jurisdição da Justiça do Trabalho, quando a parte for pessoa jurídica de Direito Público, Estado estrangeiro ou organismo internacional.”

 

Resta claro que, de acordo com o supracitado artigo, as competências do Ministério Público do Trabalho se restringem aos conflitos de ordem laboral que tenham curso na Justiça do Trabalho, não podendo seus procuradores atuar em ações judiciais sem a cumulação dos requisitos mencionados. Como a ação declaratória ajuizada pelo escritório versava sobre direito estritamente individual e de natureza disponível, além da questão ser exclusivamente de natureza societária e indenizatória, tornava-se realmente impossível juridicamente a intervenção ministerial.

De acordo com o artigo 24 do Código de Processo Civil de 2016, na assistência litisconsorcial é necessário haver relação jurídica entre o assistente e o adversário do assistido[6]. Assim, para que o Ministério Público do Trabalho pudesse atuar como assistente na causa em questão seria indispensável que ele mantivesse com alguma das partes a mesma relação jurídica material de que cuida a demanda originária[7], o que era impossível de ocorrer, porque o escritório somente buscava a declaração de quitação das obrigações societárias, especialmente quanto à distribuição de lucros durante o período em que o ex-sócio figurou vinculado à sociedade.

Tão evidente é a afirmação acima que o pleito do Ministério Público do Trabalho foi indeferido por decisão incontestável, no seguinte sentido:

Indefiro a assistência pleiteada por não vislumbrar interesse jurídico que justifique a intervenção do Ministério Público do Trabalho na presente demanda, em que se busca unicamente o reconhecimento da quitação de obrigações de natureza societária e ressarcimento de danos morais decorrente de suposta conduta inadequada do demandado.”

Inconformado com esta decisão, o Ministério Público do Trabalho interpôs agravo de instrumento, o qual foi desprovido, mantendo-se a decisão agravada a fim de não aceitar a sua assistência na ação declaratória que tramita perante a Justiça Comum. Mostra-se inquestionável a decisão, principalmente por se tratar de demanda que cuida tão somente de interesses privados, existentes entre partes maiores e capazes, de cunho exclusivamente patrimonial.

A decisão supracitada mostra-se em perfeita harmonia com a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça no sentido de que a assistência litisconsorcial “exige a comprovação de interesse jurídico direto do pretenso assistente, ou seja, a demonstração da titularidade da relação discutida no processo, razão pela qual a eventual incidência de efeitos jurídicos por via reflexa não tem o condão de possibilitar a admissão do agravante na lide nessa modalidade de intervenção processual”[8].

De acordo ainda com a Colenda Corte, “o assistente deve manter relação jurídica com a parte que poderá vir a ser atingida, direta ou indiretamente, pelos efeitos da sentença futura, atingindo sua esfera jurídica”, sendo “justamente essa possibilidade de ser alcançado pelos efeitos da sentença que faz surgir o interesse jurídico do terceiro em ingressar no feito”. Conclui, ainda, que “a afinidade meramente acadêmica com a tese não autoriza o pedido de assistência”.[9]

Diante do exposto, conclui-se de forma escorreita que o parquet trabalhista não possui competência para intervir de nenhuma forma em ação de natureza puramente societária e civil. Evidentemente, a ação ajuizada pelo escritório não atingia o interesse jurídico da instituição na defesa de direitos sociais dos trabalhadores, como tentou fazer crer o membro do Ministério Público do Trabalho na referida causa. Não há, neste caso, sequer o risco de se sofrer os efeitos da sentença, nem se encontra a hipótese abarcada dentre suas atribuições legais.

 


[1] Art. 966. Considera-se empresário quem exerce profissionalmente atividade econômica organizada para a produção ou a circulação de bens ou de serviços.Parágrafo único. Não se considera empresário quem exerce profissão intelectual, de natureza científica, literária ou artística, ainda com o concurso de auxiliares ou colaboradores, salvo se o exercício da profissão constituir elemento de empresa.

[2] “Art. 39. A sociedade de advogados pode associar-se com advogados, sem vínculo de emprego, para participação nos resultados.”

[3] “Art. 2º O Contrato Social deve conter os elementos e atender aos requisitos e diretrizes indicados a seguir:

(…)

XIII – não se admitirá o registro e arquivamento de Contrato Social, e de suas alterações, com cláusulas que suprimam o direito de voto de qualquer dos sócios, podendo, entretanto, estabelecer quotas de serviço ou quotas com direitos diferenciados, vedado o fracionamento de quotas;”

[4]Art. 2° A sociedade de advogados será constituída por sócios patrimoniais ou por sócios patrimoniais e sócios de serviço, os quais não poderão pertencer a mais de uma sociedade na mesma base territorial de cada Conselho Seccional, independentemente da quantidade de quotas que possua cada sócio no contrato social.”

[5] A juíza concluiu, acertadamente, que: “Pelo que se infere do contexto probatório produzido nos autos, entendo que a reclamada se desincumbiu do ônus que lhe competia quanto a inexistência do contrato de trabalho subordinado nos moldes da Consolidação das Leis do Trabalho, pelo que julgo improcedente o pedido de reconhecimento de vínculo.”

[6] MEDINA, José Miguel Garcia. Novo Código de Processo Civil Comentado: com remissões e notas comparativas ao CPC/1973. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2015 – pág. 216.

[7] O Ministro Fernando Gonçalves já expôs, em sede de recurso especial, o entendimento de que: “A assistência litisconsorcial, contemplada no art. 54 do Código de Processo Civil, é fenômeno que somente se verifica no campo da legitimidade extraordinária, isto é, quando alguém vai a juízo em nome próprio para defender direito alheio. Assim, o assistente litisconsorcial (substituído) é o titular da própria relação jurídica material discutida no processo, que em face de determinadas circunstâncias, está sendo defendida por terceiro, na qualidade de substituto, ou mesmo na de co-titular do direito em litígio. Não é por outra razão que o assistente litisconsorcial pode integrar a demanda, desde o início, na condição de parte, isoladamente, ou na posição de litisconsorte facultativo unitário do assistido.” (STJ, REsp 802.342/PR, Quarta Turma, Relator Ministro Fernando Gonçalves, j. 09/12/2008, DJe 02/02/2009 – g.n.).

[8] STJ, AgRg no REsp 1.385.487/MG, Segunda Turma, Rel. Min. Herman Benjamin, julgado em 24/09/2013, DJe 09/12/2013.

[9] STJ, AgRg no RCDESP nos EREsp 414961/PR, Primeira Seção, Rel. Min. Luiz Fux, julgado em 24.05.2006.


Por: Dra. Raphaella Ayres Martins Oliveira