Em nosso ordenamento jurídico, é possível a desconsideração da personalidade jurídica com a finalidade de garantir o cumprimento das obrigações e execução dos títulos executivos, na forma do que preceitua o artigo 50 do Código Civil[1].
Entretanto, e conforme depreende-se da própria leitura do artigo acima citado, a desconsideração não ocorre em qualquer caso em que não haja liquidez da pessoa jurídica para saldar suas dívidas e obrigações, devendo ocorrer o abuso de personalidade, caracterizado pelo desvio de finalidade ou pela confusão patrimonial.
Vale lembrar que a desconsideração da personalidade jurídica mereceu destaque também no Código de Ritos, que em seu artigo 133[2] e seguintes, determinou que o requerimento fosse formulado por meio de incidente processual, sendo cabível em todas as fases processuais[3].
Entretanto, há situações em que o sócio de determinada empresa, devedor de obrigações não saldadas, esvazia seu patrimônio em favor da pessoa jurídica no intuito de “blindá-lo”, tornando a pessoa física insolvente, ou ainda a sociedade empresária devedora não possui patrimônio para saldar suas obrigações, mas pertence à grupo econômico no qual uma controladora define suas atividades.
Nos casos acima, a Doutrina e a Jurisprudência admitem que a desconsideração da personalidade jurídica ocorra ao contrário do que preceitua o artigo 50 do Código Civil, isto é, seja atingida a pessoa jurídica do qual o devedor é sócio, ou mesmo outras empresas do mesmo grupo econômico da devedora. Este fenômeno jurídico nomeou-se desconsideração inversa da personalidade jurídica.
Veja que o próprio artigo 133 do Código de Processo Civil já admite expressamente a existência do instituto, quando em seu § 2º determina a este a aplicação do capítulo da desconsideração da personalidade jurídica.
Como pode ser o incidente proposto a qualquer tempo, seus efeitos perduram até a extinção da execução, pois, do contrário, se colocaria em xeque até mesmo a utilidade da medida, uma vez que sua finalidade é a de garantir o cumprimento da obrigação.
O Superior Tribunal de Justiça, através do julgamento do Recurso Especial nº 1.733.403, entendeu que os efeitos da desconsideração inversa da personalidade jurídica devem perdurar até a extinção da execução.
A Relatora do referido Recurso Especial, Ministra Nancy Andrighi, ressaltou em seu voto que “Consubstanciada a unidade econômica entre a interessada e a recorrente, apta a incluir a segunda no polo passivo da execução movida contra a primeira, passam a ser ambas tratadas como uma só pessoa jurídica devedora, até a entrega ao credor da prestação consubstanciada no título executado”.
Mais adiante, aduziu a Ministra que “conquanto se trate de ações autônomas – a execução de título extrajudicial e os embargos à execução –, não são absolutamente independentes. Em verdade, as demandas se interpenetram, porque os embargos, apesar de assumirem a forma de ação de conhecimento, têm natureza de defesa do devedor-executado em face do credor-exequente. E, depois de julgados os embargos, a execução prossegue nos exatos limites do que neles foi decidido.”.
Por fim, concluiu a Ministra Nancy Andrighi que que o fato de uma das empresas coligadas não ter participado formalmente do processo de Embargos à Execução “não tem o condão de afastar sua responsabilidade patrimonial, enquanto integrante do mesmo grupo econômico.”.
Desta forma, mostra-se acertada a decisão acima comentada, uma vez que a própria essência do instituto é garantir o recebimento do crédito, sendo certo que as diferentes configurações societárias não podem servir de obstáculo à plena satisfação desses créditos.
[1] Art. 50. Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade ou pela confusão patrimonial, pode o juiz, a requerimento da parte, ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, desconsiderá-la para que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares de administradores ou de sócios da pessoa jurídica beneficiados direta ou indiretamente pelo abuso. (Redação dada pela Lei nº 13.874, de 2019)
- 1º Para os fins do disposto neste artigo, desvio de finalidade é a utilização da pessoa jurídica com o propósito de lesar credores e para a prática de atos ilícitos de qualquer natureza. (Incluído pela Lei nº 13.874, de 2019)
- 2º Entende-se por confusão patrimonial a ausência de separação de fato entre os patrimônios, caracterizada por: (Incluído pela Lei nº 13.874, de 2019)
I – cumprimento repetitivo pela sociedade de obrigações do sócio ou do administrador ou vice-versa; (Incluído pela Lei nº 13.874, de 2019)
II – transferência de ativos ou de passivos sem efetivas contraprestações, exceto os de valor proporcionalmente insignificante; e (Incluído pela Lei nº 13.874, de 2019)
III – outros atos de descumprimento da autonomia patrimonial. (Incluído pela Lei nº 13.874, de 2019)
- 3º O disposto no caput e nos §§ 1º e 2º deste artigo também se aplica à extensão das obrigações de sócios ou de administradores à pessoa jurídica. (Incluído pela Lei nº 13.874, de 2019)
- 4º A mera existência de grupo econômico sem a presença dos requisitos de que trata o caput deste artigo não autoriza a desconsideração da personalidade da pessoa jurídica. (Incluído pela Lei nº 13.874, de 2019)
- 5º Não constitui desvio de finalidade a mera expansão ou a alteração da finalidade original da atividade econômica específica da pessoa jurídica. (Incluído pela Lei nº 13.874, de 2019)
[2]Art. 133. O incidente de desconsideração da personalidade jurídica será instaurado a pedido da parte ou do Ministério Público, quando lhe couber intervir no processo.
- 1º O pedido de desconsideração da personalidade jurídica observará os pressupostos previstos em lei.
- 2º Aplica-se o disposto neste Capítulo à hipótese de desconsideração inversa da personalidade jurídica.
[3]Art. 134. O incidente de desconsideração é cabível em todas as fases do processo de conhecimento, no cumprimento de sentença e na execução fundada em título executivo extrajudicial.