A Constituição Federal, em seu artigo 1º, coloca como fundamento do Estado Democrático de Direito, entre outros, os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa[1].
Quanto à livre iniciativa, igualmente a Constituição Federal, quando trata da ordem econômica, fundada na valorização do trabalho e da Livre Iniciativa, destaca, entre outros princípios basilares, a defesa do consumidor[2].
Não por outro motivo, em 1990 é publicada a Lei Federal 8.078/90[3], mais conhecida como Código de Defesa do Consumidor, dispondo da proteção ao consumidor e regulamentando a prestação de serviços e fornecimento de produtos dentro das relações envolvendo consumidores.
Nota-se que a própria Lei estabeleceu uma série de normas protetivas ao consumidor, entendendo-se pela sua vulnerabilidade na relação jurídica com o prestador ou fornecedor de produtos e serviços, criando-se um complexo sistema de normas e princípios que, se não observados, acabariam por gerar consequências ao fornecedor.
O próprio Código de Defesa do Consumidor permite que a proteção ao consumidor possa ser exercida por meio de ações coletivas, intentadas pelos órgãos legitimados para tal, a teor dos artigos 81 e 82[4] do diploma legal acima citado.
Assim, além da intervenção do Estado nas relações de consumo através das normas protetivas, ainda permitiu que as ações fossem intentadas coletivamente quando houvesse reiterada lesão aos interesses difusos e coletivos dos consumidores.
Desta forma, o Ministério Público de São Paulo, tendo em vista os reiterados descumprimentos de prazos de entrega de produtos adquiridos por meio de comércio eletrônico, ajuizou ação civil pública com o intuito de se estabelecer uma multa a ser aplicada às empresas por força da conduta elencada acima, e ainda incluir nos seus contratos cláusula penal que previsse o pagamento de valores ao consumidor no caso de atraso na entrega dos produtos adquiridos.
Após serem julgados improcedentes os pedidos em Primeira Instância, o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo deu provimento à Apelação do Órgão Ministerial para estabelecer a obrigatoriedade de existência da cláusula penal em favor do Consumidor, estabelecendo-se ainda a multa de 2% (dois por cento) pelo inadimplemento das obrigações do fornecedor.
A questão então chegou ao Superior Tribunal de Justiça através do Recurso Especial de nº 1.787.492, cuja relatoria coube à Ministra Nancy Andrighi.
Em seu voto, a Ministra destacou a posição de hipossuficiência do consumidor na relação jurídica com o fornecedor de produtos e serviços, sendo o Código de Defesa do Consumidor um instrumento de equilíbrio dessa relação.
Entretanto, e por mais protetiva que seja a norma, relativizando a liberdade contratual, esta não desapareceu, podendo ainda prevalecer a autonomia da vontade em determinadas circunstâncias, especialmente quando não forem verificados abusos ou lesões a direitos.
No caso em comento, asseverou a Ministra Relatora que “não se verifica abusividade das cláusulas contratuais firmadas pela recorrente a ponto de exigir uma atuação estatal supletiva. Analisando as razões recursais em conjunto com o acórdão impugnado, a intervenção estatal nos contratos a serem celebrados pela recorrente não encontra fundamento na legislação consumerista.”.
Nota-se uma modificação gradual no entendimento dos Tribunais em todo o país, capitaneadas, por certo, pelas decisões emanadas do Superior Tribunal de Justiça, quanto à figura do consumidor e à abrangência do conceito de hipossuficiência por ele ostentada.
Não era incomum afastar-se quase que completamente a autonomia de vontade das partes dos contratos, tomando suas cláusulas como ilegais e abusivas, e ainda impondo obrigações aos fornecedores que sequer foram ventiladas pelos contratantes.
Entretanto, o posicionamento vem sendo modificado gradativamente, não para um completo afastamento da hipossuficiência e proteção das normas consumeristas – isso sequer poderá ocorrer – mas para uma análise do caso concreto de uma maneira mais maleável, coibindo o abuso se e quando ele ocorrer, através das ferramentas já existentes, como, aliás, foi exatamente o fundamento do acórdão proferido no REsp. 1.787.492.
O entendimento manifestado pelo Superior Tribunal de Justiça traz uma intervenção menor na atividade econômica sem, contudo, acabar com a proteção necessária ao consumidor e, por esse motivo, mostra-se totalmente acertado.
[1]Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos:
I – a soberania;
II – a cidadania;
III – a dignidade da pessoa humana;
IV – os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa;
V – o pluralismo político.
[2]Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios:
I – soberania nacional;
II – propriedade privada;
III – função social da propriedade;
IV – livre concorrência;
V – defesa do consumidor;
VI – defesa do meio ambiente, inclusive mediante tratamento diferenciado conforme o impacto ambiental dos produtos e serviços e de seus processos de elaboração e prestação;
VII – redução das desigualdades regionais e sociais;
VIII – busca do pleno emprego;
IX – tratamento favorecido para as empresas de pequeno porte constituídas sob as leis brasileiras e que tenham sua sede e administração no País.
[3] Dispõe sobre a proteção do consumidor e dá outras providências.
[4]Art. 81. A defesa dos interesses e direitos dos consumidores e das vítimas poderá ser exercida em juízo individualmente, ou a título coletivo.
Parágrafo único. A defesa coletiva será exercida quando se tratar de:
I – interesses ou direitos difusos, assim entendidos, para efeitos deste código, os transindividuais, de natureza indivisível, de que sejam titulares pessoas indeterminadas e ligadas por circunstâncias de fato;
II – interesses ou direitos coletivos, assim entendidos, para efeitos deste código, os transindividuais, de natureza indivisível de que seja titular grupo, categoria ou classe de pessoas ligadas entre si ou com a parte contrária por uma relação jurídica base;
III – interesses ou direitos individuais homogêneos, assim entendidos os decorrentes de origem comum.
Art. 82. Para os fins do art. 81, parágrafo único, são legitimados concorrentemente: (Redação dada pela Lei nº 9.008, de 21.3.1995) (Vide Lei nº 13.105, de 2015) (Vigência)
I – o Ministério Público,
II – a União, os Estados, os Municípios e o Distrito Federal;
III – as entidades e órgãos da Administração Pública, direta ou indireta, ainda que sem personalidade jurídica, especificamente destinados à defesa dos interesses e direitos protegidos por este código;
IV – as associações legalmente constituídas há pelo menos um ano e que incluam entre seus fins institucionais a defesa dos interesses e direitos protegidos por este código, dispensada a autorização assemblear.
- 1° O requisito da pré-constituição pode ser dispensado pelo juiz, nas ações previstas nos arts. 91 e seguintes, quando haja manifesto interesse social evidenciado pela dimensão ou característica do dano, ou pela relevância do bem jurídico a ser protegido.
- 2° (Vetado).
- 3° (Vetado).