Afastamento da impenhorabilidade do bem de família no caso de obrigação assumida para terminar obra


O Código Civil, como se sabe, determina que, no caso do inadimplemento das obrigações contraídas, o devedor responde pela dívida originada deste inadimplemento com todos os seus bens[1].

Tal determinação constitui-se na regra para que o credor consiga saldar seu crédito e permita ver satisfeita a obrigação contraída entre as partes, uma vez inadimplida.

Há, entretanto, exceções quanto aos bens do devedor que podem responder pelo inadimplemento de suas obrigações. Estes bens, por sua natureza, tiveram proteção legal quanto à possibilidade de serem utilizados para a satisfação do crédito dos credores.

O Código de Processo Civil, em seus artigos 832[2] e 833[3] traz, primeiro, a diretriz de que não podem ser objeto de execução os bens que a Lei considera impenhoráveis e inalienáveis e, em seguida, quais bens seriam esses.

Dentre muitos dos exemplos que poderíamos aqui citar quanto às exceções mencionadas acima, um será por nós tratada no presente artigo, pois foi objeto de recente julgado perante o Superior Tribunal de Justiça: o Bem de Família.

Os Bens de Família são regidos pela Lei Federal 8009/90[4] que, em seu artigo 1º, define o bem de família como sendo o imóvel residencial próprio do casal, ou da entidade familiar, é impenhorável e não responderá por qualquer tipo de dívida civil, comercial, fiscal, previdenciária ou de outra natureza, contraída pelos cônjuges ou pelos pais ou filhos que sejam seus proprietários e nele residamsalvo nas hipóteses previstas nesta lei.

Desta forma, o bem de família não responderia por dívida civil, tributária, comercial, previdenciária, ou de qualquer outra natureza. Mas a própria Lei traz exceções a essa impenhorabilidade. O artigo 3º da referida Lei diz que a impenhorabilidade é oponível em qualquer processo de execução civil, fiscal, previdenciária, trabalhista ou de qualquer outra natureza, salvo as hipóteses contidas em seus incisos[5].

No caso concreto que motivou o presente artigo, os adquirentes de determinada unidade em construção, após a falência da construtora, aderiram voluntariamente a uma associação de adquirentes que, com esforços comuns, desejava terminar a construção do edifício aonde se situavam as unidades imobiliárias adquiridas.

Não tendo condições de continuar com suas obrigações assumidas com a associação de adquirentes, os compradores acabaram por ficar inadimplentes com as prestações assumidas, sendo, por conseguinte, executados nos valores em aberto, tendo sido penhorados os direitos aquisitivos quanto ao imóvel em construção.

Tendo o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo negado a proteção de impenhorabilidade ao bem de família aos adquirentes, estes interpuseram Recurso Especial, autuado sob o nº 1.658.601. A Relatoria coube à Ministra Nancy Andrighi.

Em seu voto, a ministra relatora asseverou que há, no caso concreto, um interesse coletivo que deve prevalecer sobre o do particular, sendo que a associação constituída para terminar as obras englobou todo o empreendimento, e não apenas a unidade dos adquirentes, sendo certo que não seria possível proteger apenas uma família em detrimento a todas as outras.

Neste sentido, a ministra ressaltou que “Se todos os associados se obrigaram perante a associação a custear o término da construção do todo – isso é, das três torres que compõem o condomínio –, não há como imputar os pagamentos realizados por cada um dos associados a uma determinada torre ou unidade.”

Ademais, ponderou a ministra que “não se está diante de contrato celebrado com a finalidade de transmissão da propriedade, uma vez que a quitação da dívida assumida perante a recorrida não tem o condão de subtrair daquele credor fiduciário a propriedade resolúvel do imóvel para restituir aos devedores fiduciantes a sua propriedade plena.”

Por fim, concluiu a ministra, considerando que o aporte financeiro para a conclusão de toda a obra “é indispensável à efetiva construção do imóvel de todos os associados com suas respectivas áreas comuns, aporte esse sem o qual os recorrentes sequer teriam a expectativa de concretizar a titularidade do bem de família, tendo em vista a falência da construtora originariamente contratada para aquela finalidade.”.

Desta forma, nota-se que a decisão em comento acaba por elevar, de certa forma, a obrigação assumida pelos adquirentes perante a associação, ao status propter rem, muito assemelhada à já pacificada situação da cobrança de despesas ordinárias e extraordinárias de condomínio, que afastam a proteção ao bem de família em prol de toda a coletividade comunheira, o que nos parece acertado.

 


[1] Art. 391. Pelo inadimplemento das obrigações respondem todos os bens do devedor.

[2] Art. 832. Não estão sujeitos à execução os bens que a lei considera impenhoráveis ou inalienáveis.

[3] Art. 833. São impenhoráveis:

I – os bens inalienáveis e os declarados, por ato voluntário, não sujeitos à execução;

II – os móveis, os pertences e as utilidades domésticas que guarnecem a residência do executado, salvo os de elevado valor ou os que ultrapassem as necessidades comuns correspondentes a um médio padrão de vida;

III – os vestuários, bem como os pertences de uso pessoal do executado, salvo se de elevado valor;

IV – os vencimentos, os subsídios, os soldos, os salários, as remunerações, os proventos de aposentadoria, as pensões, os pecúlios e os montepios, bem como as quantias recebidas por liberalidade de terceiro e destinadas ao sustento do devedor e de sua família, os ganhos de trabalhador autônomo e os honorários de profissional liberal, ressalvado o § 2º;

V – os livros, as máquinas, as ferramentas, os utensílios, os instrumentos ou outros bens móveis necessários ou úteis ao exercício da profissão do executado;

VI – o seguro de vida;

VII – os materiais necessários para obras em andamento, salvo se essas forem penhoradas;

VIII – a pequena propriedade rural, assim definida em lei, desde que trabalhada pela família;

IX – os recursos públicos recebidos por instituições privadas para aplicação compulsória em educação, saúde ou assistência social;

X – a quantia depositada em caderneta de poupança, até o limite de 40 (quarenta) salários-mínimos;

XI – os recursos públicos do fundo partidário recebidos por partido político, nos termos da lei;

XII – os créditos oriundos de alienação de unidades imobiliárias, sob regime de incorporação imobiliária, vinculados à execução da obra.

  • 1º A impenhorabilidade não é oponível à execução de dívida relativa ao próprio bem, inclusive àquela contraída para sua aquisição.
  • 2º O disposto nos incisos IV e X do caput não se aplica à hipótese de penhora para pagamento de prestação alimentícia, independentemente de sua origem, bem como às importâncias excedentes a 50 (cinquenta) salários-mínimos mensais, devendo a constrição observar o disposto no art. 528, § 8º , e no art. 529, § 3º .
  • 3º Incluem-se na impenhorabilidade prevista no inciso V do caput os equipamentos, os implementos e as máquinas agrícolas pertencentes a pessoa física ou a empresa individual produtora rural, exceto quando tais bens tenham sido objeto de financiamento e estejam vinculados em garantia a negócio jurídico ou quando respondam por dívida de natureza alimentar, trabalhista ou previdenciária.

[4] LEI Nº 8.009, DE 29 DE MARÇO DE 1990. – Dispõe sobre a impenhorabilidade do bem de família.

[5] Art. 3º A impenhorabilidade é oponível em qualquer processo de execução civil, fiscal, previdenciária, trabalhista ou de outra natureza, salvo se movido:

I – em razão dos créditos de trabalhadores da própria residência e das respectivas contribuições previdenciárias;                       (Revogado pela Lei Complementar nº 150, de 2015)

II – pelo titular do crédito decorrente do financiamento destinado à construção ou à aquisição do imóvel, no limite dos créditos e acréscimos constituídos em função do respectivo contrato;

III — pelo credor de pensão alimentícia;

III – pelo credor da pensão alimentícia, resguardados os direitos, sobre o bem, do seu coproprietário que, com o devedor, integre união estável ou conjugal, observadas as hipóteses em que ambos responderão pela dívida;                  (Redação dada pela Lei nº 13.144 de 2015)

IV – para cobrança de impostos, predial ou territorial, taxas e contribuições devidas em função do imóvel familiar;

V – para execução de hipoteca sobre o imóvel oferecido como garantia real pelo casal ou pela entidade familiar;

VI – por ter sido adquirido com produto de crime ou para execução de sentença penal condenatória a ressarcimento, indenização ou perdimento de bens.

VII – por obrigação decorrente de fiança concedida em contrato de locação.                     (Incluído pela Lei nº 8.245, de 1991)

VII – por obrigação decorrente de fiança concedida em contrato de locação; e                       (Redação dada pela Medida Provisória nº 871, de 2019)

VII – por obrigação decorrente de fiança concedida em contrato de locação.                     (Incluído pela Lei nº 8.245, de 1991)

VIII – para cobrança de crédito constituído pela Procuradoria-Geral Federal em decorrência de benefício previdenciário ou assistencial recebido indevidamente por dolo, fraude ou coação, inclusive por terceiro que sabia ou deveria saber da origem ilícita dos recursos.                       (Incluído pela Medida Provisória nº 871, de 2019)