Não tem sido raro ver alguns contribuintes, devedores de tributos, pleitearem a compensação de suas dívidas com créditos que têm a receber das Fazendas a título de precatórios com prazo de pagamento já vencido. Isto porque o art. 78 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT) passou a conferir, a esses precatórios cujo prazo de liquidação já se expirou, poder liberatório do pagamento de tributos da entidade devedora.
O objetivo deste artigo é examinar a validade, ou não, desta pretensão, assim como sua aplicação ao caso em que o contribuinte passa a deter o crédito por força de cessão de direito protagonizada pelo credor originário.
Afirma-se, primeiramente, não se mostrar razoável a aplicação do art. 78, § 2º, do ADCT à hipótese em que o precatório judicial foi inscrito não em nome do contribuinte devedor, mas sim de terceiro, pois a ratio da norma constitucional transitória, ao estabelecer o poder liberatório do precatório vencido e não liquidado, inegavelmente foi o de dispensar o credor originário do pagamento de seus débitos tributários, e não o de favorecer terceiros para os quais haja sido negociado o referido crédito, com o deságio que é natural em ocasiões tais, e que nenhuma relação jurídica tem com a Fazenda.
Dito de outra forma, o crédito que o contribuinte afirma possuir em tais casos é oriundo não de precatório, mas sim de contrato de cessão civil celebrado entre ele e o credor originário, em relação ao qual a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça (STJ) tem se posicionado no sentido de reconhecer sua não liquidez, seja pela impossibilidade de saber a data exata do pagamento do precatório, seja porque os créditos podem ser cedidos concomitantemente a diversas pessoas (REsp 951976-RS e REsp 586.172-DF).
Por tais razões, a vingar a pretensão desses contribuintes, estar-se-ia atribuindo efeito liberatório não ao precatório propriamente dito, mas sim ao contrato particular de cessão de crédito firmado entre ele e o originário credor do precatório judicial, em total desvirtuarmento do que a norma constitucional transitória pretendeu assegurar.
Inaplicabilidade do Art. 78, § 2º, do ADCT a Determinadas Situações
Consoante o regime constitucional estabelecido no corpo permanente da Constituição Federal, os credores têm a garantia de receber do Poder Público o pagamento da totalidade dos seus créditos, observada a ordem de precedência indicada no art. 100, que hospeda a seguinte norma:
“Art. 100. à exceção dos créditos de natureza alimentícia, os pagamentos devidos pela Fazenda Federal, Estadual ou Municipal, em virtude de sentença judiciária, far-se-ão exclusivamente na ordem cronológica de apresentação dos precatórios e à conta dos créditos respectivos, proibida a designação de casos ou de pessoas nas dotações orçamentárias e nos créditos adicionais abertos para este fim.”
Sem prejuízo dessa regra, a Emenda Constitucional n.º 30/00 facultou à Fazenda Pública proceder ao parcelamento do débito em até dez prestações anuais, ressalvadas as exceções constantes do art. 78 do ADCT, de seguinte teor:
“Art. 78. Ressalvados os créditos definidos em lei como de pequeno valor, os de natureza alimentícia, os de que trata o Art. 33 deste Ato das Disposições Constitucionais Transitórias e suas complementações e os que já tiverem os seus respectivos recursos liberados ou depositados em juízo, os precatórios pendentes na data de promulgação desta Emenda e os que decorram de ações iniciais ajuizadas até 31 de dezembro de 1999 serão liquidados pelo seu valor real, em moeda corrente, acrescido de juros legais, em prestações anuais, iguais e sucessivas, no prazo máximo de dez anos, permitida a cessão dos créditos.”
Com efeito, a norma acima transcrita não excluiu a regra de precedência previsto no art. 100, senão que apenas instituiu a possibilidade de parcelamento dos precatórios para as situações especificadas. Coexistem os dois regimes de pagamento: o permanente, para as requisições de precatórios posteriores à promulgação da Emenda Constitucional n.º 30/00, e o transitório, para os créditos a que alude o art. 78 do ADCT.
Em contrapartida à possibilidade de parcelamento, o poder constituinte de reforma estabeleceu a garantia de que o pagamento das parcelas deve se suceder até a plena satisfação do credor, sem quaisquer outras postergações. Assim, enquanto no regime constitucional permanente a garantia do credor consiste em receber, na sua vez, a totalidade do crédito, o regime das disposições transitórias conferiu ao credor “prejudicado” pelo parcelamento uma espécie de compensação, qual seja, o direito de abater as obrigações tributárias pecuniárias com o valor das prestações anuais, na hipótese de haver atraso da Fazenda no pagamento das parcelas (ADCT, art. 78, § 2º).
Veja-se, por amor à clareza, o teor da referida norma:
“§ 2º. As prestações anuais a que se refere o caput deste artigo terão, se não liquidadas até o final do exercício a que se referem, poder liberatório do pagamento de tributos da entidade devedora.”
Diante da possibilidade de vir a ocorrer, em detrimento dos créditos parcelados, a previsão orçamentária apenas dos precatórios submetidos ao regime permanente, o poder constituinte derivado apontou o vencimento do prazo e a não inclusão das parcelas no orçamento como causas legitimadoras do poder liberatório das obrigações tributárias, mas apenas assegurando esse direito, repita-se, aos credores cujos precatórios tenham sido submetido ao pagamento parcelado, em contrapartida ao tempo maior a que se sujeitarão para o recebimento do crédito.
No Estado do Rio de Janeiro, por exemplo, não se adotou esse regime excepcional de pagamento dos seus precatórios, optando, ao revés, pela manutenção da regra geral prevista no art. 100 da CF, circunstância essa que é bastante, por si só, para afastar a pretendida aplicação ao caso concreto da norma constante do § 2º, art. 78, do ADCT.
Seja concedido o registro de que a alteração normativa introduzida pelo constituinte derivado foi erigida em favor do ente público que tivesse, no ano seguinte à promulgação da Emenda Constitucional n.º 30/00, possibilidade de conduzir sua gestão orçamentária para a satisfação da décima parte do somatório dos valores de todos os precatórios pendentes à época.
Tal não é a situação do Estado do Rio de Janeiro, que não ostentava forças para satisfazer o pagamento, já no ano seguinte ao da referida emenda, de 10% dos precatórios vencidos e não pagos durante décadas.
A adoção, ou não, do parcelamento em cada um dos estados federados constituiu, assim, manifestação do poder de auto-gestão, ínsito à autonomia constitucionalmente assegurada aos mesmos, que se materializa através do poder de organização própria e da autonomia financeira, ambas protegidas como cláusulas pétreas (CF, art. 60, § 4º, inciso I).
O reconhecimento de que a compensação prevista no art. 78, § 2º, do ADCT está condicionada à adoção do regime de parcelamento já foi firmada em diversos julgados do E. Superior Tribunal de Justiça, como se observa, exemplificativamente, das ementas abaixo transcritas:
“PROCESSUAL CIVIL. RECURSO ORDINÁRIO EM MANDADO DE SEGURANÇA. DÉBITOS COM A FAZENDA PÚBLICA ESTADUAL. COMPENSAÇÃO COM PRECATÓRIO. INVIABILIDADE.
- Analisando-se a sistemática prevista no art. 78 do ADCT, constata-se que, enquadrando-se o crédito em alguma das hipóteses previstas no caput do artigo referido — precatórios pendentes na data de promulgação da EC 30/2000 e os que decorram de ações iniciais ajuizadas até 31 de dezembro de 1999 —, e estabelecido o parcelamento, o inadimplemento de alguma das parcelas atribui ao respectivo crédito poder liberatório do pagamento de tributos da entidade devedora (§ 2º).
(…)
- Assim, considerando que a norma estadual em comento não é incompatível, formal e materialmente, com os preceitos constitucionais referidos, e que não ofende o princípio da razoabilidade — pois a sua não-observância acarreta, como bem observou o Tribunal de origem, comprovação insuficiente acerca dos créditos obtidos por meio de cessão —, impõe-se reconhecer a sua legitimidade e, consequentemente, reconhecer a inexistência de direito líquido e certo na hipótese.
(…)
- Recurso ordinário desprovido.”
(RMS 28406-PR, rel. Ministra Denise Arruda, 1ª Turma, j. 19/03/2009, DJe 16/04/2009) (g.n.)
***
“PROCESSUAL CIVIL. RECURSO ORDINÁRIO EM MANDADO DE SEGURANÇA. DÉBITOS COM A FAZENDA PÚBLICA ESTADUAL. COMPENSAÇÃO COM PRECATÓRIO DE NATUREZA ALIMENTAR ADQUIRIDO POR MEIO DE CESSÃO DE CRÉDITO. INVIABILIDADE.
- Analisando-se a sistemática prevista no art. 78 do ADCT, constata-se que, enquadrando-se o crédito em alguma das hipóteses previstas no caput do artigo referido — precatórios pendentes na data de promulgação da EC 30/2000 e os que decorram de ações iniciais ajuizadas até 31 de dezembro de 1999 —, e estabelecido o parcelamento, o inadimplemento de alguma das parcelas atribui ao respectivo crédito poder liberatório do pagamento de tributos da entidade devedora (§ 2º).
- No entanto, é distinta a hipótese dos autos. Do exame dos documentos acostados, verifica-se que o crédito embutido no Precatório 92.093/2003 tem natureza alimentar, circunstância expressamente ressalvada pelo caput do art. 78 do ADCT, apta a obstar o parcelamento do referido crédito. Assim, inexistindo parcelamento e, consequentemente, parcela inadimplida, não há falar na incidência do § 2º do artigo em comento. Assim, ao contrário do que sustenta a recorrente, o “poder liberatório” está condicionado ao enquadramento na sistemática prevista no art. 78 do ADCT.
(…)
- Recurso ordinário desprovido.”
(RMS 28811-PR, rel. Ministra Denise Arruda, 1ª Turma, j. 26/05/2009, DJe 18/06/2009) (g.n.).
Essa parece ser a única forma de interpretar a norma transitória de direito constitucional sem subverter o próprio sistema de precatórios estabelecido pelo art. 100 da CF, que estaria irremediavelmente aniquilado caso o credor pudesse, ao seu alvedrio e independentemente da adoção do regime de parcelamento pelo ente federado, impor o efeito liberatório a toda e qualquer mora quanto ao prazo de pagamento.
A não ser assim, haveria ofensa a princípios caros ao ordenamento jurídico, como os da isonomia e da impessoalidade, que informam o regime constitucional dos precatórios, pois semelhante procedimento conferiria tratamento privilegiado a alguns em detrimento dos credores que estão à frente, agravando-se a situação quando estes fossem titulares de créditos de natureza alimentar.
Não é por outra razão que o Min. Gilmar Mendes, ao apreciar o Pedido de Intervenção 2.915, assim se manifestou:
“Assegurar, de modo irrestrito e imediato, a eficácia da norma contida no art. 78 do ADCT, pode representar negativa de eficácia a outras normas constitucionais. (…) Desse modo, não há direito líquido e certo da impetrante de ser amparado por mandado de segurança, vez que o sequestro constitucional, previsto no art. 78, § 4º, do ADCT, não pode ser determinado por implicar a preterição da ordem de precedência dos precatórios de crédito da mesma natureza e, ainda, o que é mais grave, em preterição de créditos alimentares, que preferem aos da impetrante que não tem essa natureza.”
Embora examinando a hipótese de seqüestro, as razões explicitadas para o caso acima aludido são inteiramente aplicáveis à hipótese ora cogitada, especialmente na parte em que reconhece que a aplicação inadequada do art. 78 do ADCT implica em violação da ordem de preferência consagrada no art. 100 da CF.
Ausência de Lei Específica
A Administração Pública está adstrita ao principio da legalidade, em acepção diversa da que assume este para o particular. Assim é que todo atuar estatal deriva da lei (em sentido amplo), não lhe sendo dado agir por obra e desígnio do administrador senão no espaço aberto pela lei.
No direito financeiro e no direito tributário, o principio da legalidade assume especial destaque e ganha relevo próprio. Se, à primeira evidência, o sentido que mais facilmente deflui de sua interpretação é aquele inscrito no art. 150, I, da CF, não se há de deixar de perceber a vinculação das autoridades fazendárias aos limites abertos pela lei.
O que se afirma, de outro modo, é a impossibilidade de uma interpretação que, desvirtuando os limites autorizados pelo legislador, permita ao administrador a atuação através de seus próprios caprichos. Ainda que a atuação do administrador não seja calcada em interesse pessoal e busque, por objetivo, o bem comum, estará eivada de vício se não contar com o escudo legal.
Desta feita, a instituição de um procedimento para o pagamento de precatórios não autoriza o seu desvirtuamento pela mera vontade do credor. Igualmente, a criação de uma possibilidade de compensação de precatórios com tributos somente poderá ser autorizada nos exatos termos em que prevista em lei.
Pois bem. A compensação, como forma de extinção do crédito tributário, está prevista no art. 156, inciso II, do CTN, diploma legal esse, no entanto, que em seu art. 170 condiciona a utilização do procedimento à existência de lei especifica autorizativa do ente tributante[1].
O Decreto-Lei n.º 05/75 (Código Tributário do Estado do Rio de Janeiro), em seu art. 190, ao reproduzir tal exigência, deixa claro que, ao contrário da compensação do direito privado, a compensação no direito tributário dá-se apenas de forma legal, não admitindo hipótese de compensação consensual ou judicial[2].
Tratando-se de ICMS, não há no Estado do Rio de Janeiro lei autorizando a compensação na circunstância acima mencionada, circunstância essa que obsta a extinção do crédito tributário mediante aproveitamento de crédito decorrente de cessão de precatório judicial. O E. TJRJ possui posição consolidada nesse sentido, vedando a compensação de crédito tributário, com base na inexistência de lei específica que regule a matéria, conforme se observa da seguinte decisão:
“MANDADO DE SEGURANÇA. ICMS SOBRE FORNECIMENTO DE ENERGIA ELÉTRICA. DECRETO ESTADUAL 27.427/2000 E LEI ESTADUAL 2.657/1996. ATO CONCRETO. AUTORIDADE COATORA. PRESTAÇÃO DE TRATO SUCESSIVO. ALÍQUOTA. INSCONSTITUCIONALIDADE RECONHECIDA PELO ÓRGÃO ESPECIAL. EFEITO VINCULANTE. IMPOSSIBILIDADE DE COMPESAÇÃO.
(…) Não é possível a compensação tributária, uma vez que o art. 170 do CTN exige lei especifica sobre o tema, sendo esta inexistente. CONCESSÃO PARCIAL DA ORDEM.”
(MS 1.618/08, 9ª Câmara Cível, rel. Des. Roberto de Abreu e Silva, j. 28/04/09) (g.n.).
Confirma esse raciocínio a decisão proferida na ADI 2.581-1, de relatoria do Ministro Carlos Veloso, que reconheceu a constitucionalidade de lei do Estado de Rondônia que autoriza a compensação de créditos tributários com crédito decorrente de precatório judicial pendente de pagamento, com base no art. 78, § 2º, do ADCT. Desta decisão, depreende-se que não há questionamento quanto à legitimidade da previsão desse tipo de compensação pela Constituição Federal; entretanto, faz-se necessária a edição de lei estadual específica que a regulamente, dando efetividade à compensação pretendida, lei essa que não existe no território fluminense.
Eficácia Limitada do Art. 78, § 2º, do ADCT
Como visto, alguns contribuintes escoram sua pretensão no § 2º do art. 78 do ADCT – com redação conferida pela Emenda Constitucional n.º 30/00 –, que prevê o caráter liberatório das obrigações tributárias pecuniárias na hipótese de atraso no pagamento parcelado dos precatórios pelo ente devedor.
Todavia, ao contrário do que pode parecer, o referido dispositivo, por si só, não dispõe de todos os elementos capazes de disciplinar o exercício do direito ali previsto, sendo inegável a imprescindibilidade de regulamentação especifica pelo ente tributante. Trata-se de norma constitucional de eficácia limitada.
Dito de outro modo: a generalidade da redação da norma enfocada demonstra a necessidade de regulamentação por parte dos entes federativos, de forma a atribuí-la eficácia plena, uma vez que de sua simples leitura não há como se estabelecer, por exemplo, se haverá uma ordem prioritária de tributos a serem compensados ou como será realizada a escrituração nos livros fiscais do contribuinte.
Considerando a natureza vinculada da atividade estatal e a inexistência de normas que regulem a compensação, o aproveitamento de crédito oriundo de precatório judicial a fim de extinguir crédito tributário de ICMS mostrar-se-ia manifestamente ilegal, eis que, não havendo qualquer respaldo normativo, estaria pautada em mero juízo de conveniência e oportunidade.
Além de ilegal, a compensação sem previsão legislativa acarretará violação a direitos de terceiros – decorrente da não observância da ordem cronológica de apresentação dos precatórios, como já se advertiu antes –, assim como poderá causar prejuízos diretos à coletividade em função da redução da arrecadação.
Importante ressaltar que o direito tributário existe como mera atividade-meio, tendo como função precípua de sua existência a obtenção de receitas para que o Estado possa atender os direitos fundamentais dos particulares e promover a consecução do bem comum. Assim, a autorização indiscriminada da compensação dos precatórios judiciais a fim de excluir créditos tributários, vencidos ou vincendos – com base em norma constitucional carecedora de regulamentação –, tornará inevitável o abalo no atendimento a outras pretensões dos particulares, muitas delas vinculadas à usufruição des direitos fundamentais.
Necessária se faz, por evidente, a autuação legislativa infraconstitucional como meio de impor limites ao exercício do direito à compensação, de forma a evitar o comprometimento dos serviços e atividades estatais tidas por essenciais.
Enfim, o art. 78 do ADCT traz uma estrutura normativa insuficiente, configurando uma norma de eficácia limitada, que somente atingirá sua plenitude normativa quando devidamente regulada pelos respectivos Estados. A esse respeito, confira-se o seguinte entendimento:
“(a) a Emenda Constitucional n.º 30/00 apresenta todas as características de uma norma de eficácia limitada, não dispondo de normatividade suficiente para conferir efetividade aos direitos e obrigações por ela mesma instituídos;
(b) a atividade da Fazenda Pública é, por força de norma constitucional, vinculada, sendo vedado ao agente público avaliar pleitos relativos à compensação de tributos, sob um juízo de conveniência e oportunidade;
(c) não se revela compatível com os princípios, que informam o ordenamento constitucional em vigor, a realização de negociações, caso a caso, pela Administração Pública, para fins de pagamento de precatórios judiciais”.
Diante da ausência de legislação estadual para dar efetividade à citada norma constitucional, não há como ser deferido o pedido de compensação.
Por último, é relevante registrar que, sobre o tema, pende de julgamento no E. Supremo Tribunal Federal a ADIN n.º 2356, na qual os Ministros Néri da Silveira (relator) e Carlos Ayres Britto votaram pelo deferimento da liminar em ordem a suspender a eficácia do art. 2º da EC n.º 30/00, que introduziu no ADCT o art. 78, já sendo possível antever o resultado a que chegará o referido julgamento.
Desrespeito à Ordem Cronológica de Pagamento dos Precatórios
Os atos do poder público são pautados por princípios basilares que buscam assegurar valores metaindividuais, que se manifestam como a expressão máxima do direito, traduzidos na promoção do bem estar coletivo e na paz social. Entre esses princípios, está a isonomia.
O tratamento isonômico conferido pela Constituição Federal reflete-se, por óbvio, no direito tributário, o qual deverá dispor de meios que vedem o estabelecimento de diferenças entre contribuintes – e entre os administrados de forma geral – que se encontrem em situações equivalentes, com base em arbitrariedades ou em função de condições inerentes às pessoas ou seu status, não sendo por outro motivo que o art. 100 da CF previu, de maneira expressa, a realização dos pagamentos dos precatórios em observância à ordem cronológica de sua apresentação.
O Poder Público, diante de tal norma, vê-se obrigado a atendê-la de maneira incondicional, não cabendo ao administrador qualquer juízo de valor ou estabelecimento de outros critérios – mesmo que mais vantajosos ao erário – para o pagamento dos precatórios que não a observância de sua ordem cronológica. Prova disso é a introdução da palavra exclusivamente no corpo do texto constitucional.
A obediência ao critério cronológico estabelecido pela Constituição Federal tem por objetivo não só o referido principio da isonomia, mas também a própria moralidade e a impessoalidade. Nos dizeres do Min. Celso de Mello, no julgamento do RE n.º 206.277-4/SP, a observância estrita à ordem cronológica tem por objetivo “impedir favorecimentos pessoais indevidos e frustrar injustas perseguições ditadas por razões de caráter político-administrativo”.
Na hipótese em tela, a compensação traduzir-se-ia nada mais do que em uma quebra à ordem de precedência cronológica prevista, com a preterição do credor mais antigo, e, conseqüentemente, uma violação ao art. 100 da CF.
Admitir-se o contrário equivaleria a acolher uma inconstitucional escolha de credores pela Fazenda Pública, violando a ordem de precedência cronológica prevista pela norma acima referida.
A jurisprudência do E. Supremo Tribunal Federal orienta-se no mesmo sentido da tese aqui alvitrada, conforme demonstra a seguinte decisão:
“RECLAMAÇÃO – ALEGAÇÃO DE DESRESPEITO A ACÓRDÃO DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL RESULTANTE DE JULGAMENTO PROFERIDO EM SEDE DE CONTROLE NORMATIVO ABSTRATO – INOCORRÊNCIA – SEQUESTRO DE RENDAS PÚBLICAS LEGITIMAMENTE EFETIVADO – MEDIDA CONSTRITIVA EXTRAORDINÁRIA JUSTIFICADA, NO CASO, PELA INVERSÃO DA ORDEM DE PRECEDÊNCIA DE APRESENTAÇÃO E DE PAGAMENTO DE DETERMINADO PRECATÓRIO – IRRELEVÂNCIA DE A PRETERIÇÃO DA ORDEM CRONOLÓGICA, QUE INDEVIDAMENTE BENEFICIOU CREDOR MAIS RECENTE, DECORRER DA CELEBRAÇÃO, POR ESTE, DE ACORDO MAIS FAVORÁVEL AO PODER PÚBLICO – NECESSIDADE DE A ORDEM DE PRECEDÊNCIA SER RIGIDAMENTE RESPEITADA PELO PODER PÚBLICO – SEQUESTRABILIDADE NA HIPOTESE DE INOBSERVANCIA DESSA ORDEM CRONOLÓGICA, DOS VALORES INDEVIDAMENTE PAGOS OU, ATÉ MESMO, DAS PROPRIAS RENDAS PÚBLICAS – RECURSO IMPROVIDO. EFICÁCIA VINCULANTE E FISCALIZAÇÃO NORMATIVA ABSTRATA DE CONSTITUCIONALIDADE – LEGITIMIDADE CONSTITUCIONAL DO ART. 28 DA LEI Nº. 9.868/99.
(…)
Precedente. A SIGNIFICAÇÃO CONSTITUCIONAL DA NECESSIDADE DE EXPEDIÇÃO DOS PRECATÓRIOS JUDICIÁRIOS.
O regime constitucional de execução por quantia certa contra o Poder Público, qualquer que seja a natureza do crédito exeqüendo (RTJ 150/337) – ressalvadas as obrigações definidas em lei como de pequeno valor – impõe a necessária extração de precatório, cujo pagamento deve observar, em obséquio aos princípios ético-juridicos da moralidade, da impessoalidade e da igualdade, a regra fundamental que outorga preferência apenas a quem dispuser de precedência cronológica (prior in tempore, potior in jure). A exigência constitucional pertinente à expedição de precatório – com a consequente obrigação imposta ao Estado de estrita observância da ordem cronológica de apresentação desse instrumento de requisição judicial de pagamento – tem por finalidade (a) assegurar a igualdade entre os credores e proclamar a inafastabilidade do dever estatal de solver os débitos judicialmente reconhecidos em decisão transitada em julgado (RTJ 108/463), (b) impedir favorecimentos pessoais indevidos e (c) frustrar tratamentos discriminatórios, evitando injustas perseguições ou preterições motivadas por razões destituídas de legitimidade jurídica. PODER PÚBLICO – PRECATÓRIO – INOBSERVÂNCIA DA ORDEM CRONOLÓGICA DE SUA APRESENTAÇÃO. – A Constituição da República não quer apenas que a entidade estatal pague os seus débitos judiciais. Mais do que isso, a Lei Fundamental exige que o Poder Público, ao solver a sua obrigação, respeite a ordem de precedência cronológica em que se situam os credores do Estado. – A preterição da ordem de precedência cronológica – considerada a extrema gravidade desse gesto de insubmissão estatal às prescrições da Constituição – configura comportamento institucional que produz, no que concerne aos Prefeitos Municipais, (a) conseqüências de caráter processual (seqüestro da quantia necessária à satisfação do débito, ainda que esse ato extraordinário de constrição judicial incida cobre rendas públicas), (b) efeitos de natureza penal (crime de responsabilidade, punível com pena privativa de liberdade – DL 201/67, art. 1º, XII) e (c) reflexos de índole político-administrativa (possibilidade de intervenção do Estado-membro no Município, sempre que essa medida extraordinária revelar-se essencial à execução de ordem ou decisão emanada do Poder Judiciário – CF, art. 35, IV, in fine).
PAGAMENTO ANTECIPADO DE CREDOR MAIS RECENTE – CELEBRAÇÃO COM ELE, DE ACORDO FORMULADO EM BASES MAIS FAVORÁVEIS AO PODER PÚBLICO – ALEGAÇÃO DE VANTAGEM PARA O ERÁRIO PÚBLICO – QUEBRA DA ORDEM CONSTITUCIONAL DE PRECEDENCIA CRONOLÓGICA – INADMISSIBILIDADE. – O pagamento antecipado de credor mais recente, em detrimento daquele que dispõe de precedência cronológica, não se legitima em face da Constituição, pois representa comportamento estatal infringente da ordem de prioridade temporal, assegurada, de maneira objetiva e impessoal, pela Carta Política, em favor de todos os credores do Estado. O legislador constituinte, ao editar a norma inscrita no art. 100 da Carta Federal, teve por objetivo evitar a escolha de credores pelo Poder Público. Eventual vantagem concedida ao erário público, por credor mais recente, não justifica, para efeito de pagamento antecipado de seu crédito, a quebra da ordem constitucional de precedência cronológica. O pagamento antecipado que daí resulte – exatamente por caracterizar escolha ilegítima de credor – transgride o postulado constitucional que tutela a prioridade cronológica na satisfação dos débitos estatais, autorizando, em consequência – sem prejuízo de outros efeitos de natureza jurídica e de caráter político-administrativo –, a efetivação do ato de seqüestro (RTJ 159/943-945), não obstante o caráter excepcional de que se reveste essa medida de constrição patrimonial. Legitimidade do ato de que ora se reclama. Inocorrência de desrespeito à decisão plenária do Supremo Tribunal Federal proferida na ADI 1.662/SP.”
(RE 387.870/SP, rel. Min. Sepúlveda Pertence, j. em 25/06/07) (g.n.).
A quebra da ordem cronológica prevista, além de manifestamente inconstitucional, violando os princípios da isonomia, da moralidade, da impessoalidade e a própria segurança jurídica daqueles que aguardam ansiosamente na fila dos precatórios para ver exercido o seu direito, poderá levar, ainda, a conseqüências de ordem econômica e político-administrativa.
No aspecto econômico, o art. 100, § 2º, da CF prevê o seqüestro da quantia necessária para a satisfação do débito, a requerimento do credor, nos casos em que este venha a ser ferido em seu direito de preferência[3].
A violação à ordem de precedência cronológica dos precatórios caracteriza, ainda, comportamento institucional que poderá levar a conseqüências de ordem político-administrativa, com a possibilidade de intervenção federal nos casos em que esta medida se tornar indispensável para o cumprimento de ordem ou decisão emanada pelo Poder Judiciário, conforme prevê o art. 34, inciso VI, da CF[4].
É notório que as finanças dos Estados são combalidas e que o atraso no pagamento por ente público, por força de dificuldade financeira, não seria suficiente para ensejar uma intervenção federal. Entretanto, havendo recursos financeiros, os precatórios deverão ser liquidados pelo respectivo ente estatal com respeito absoluto à ordem de precedência cronológica de sua apresentação, conforme dispõe o referido art. 100 da CF.
[1] “Art. 170. A lei pode, nas condições e sob as garantias que estipular, ou cuja estipulação em cada caso atribuir à autoridade administrativa, autorizar a compensação de créditos tributários com créditos líquidos e certos, vencidos ou vincendos, do sujeito passivo contra a Fazenda Pública.” (g.n.)
[2] “Art. 190. É facultado ao Poder Executivo, mediante as condições e garantias que estipular para cada caso, através de legislação especial, efetuar a compensação de créditos tributários com créditos líquidos e certos, vencidos ou vincendos, do sujeito passivo contra a Fazenda Estadual.” (g.n.)
[3] “§ 2º As dotações orçamentárias e os créditos abertos serão consignados diretamente ao Poder Judiciário, cabendo ao Presidente do Tribunal que proferir a decisão exequenda determinar o pagamento segundo as possibilidades do depósito, e autorizar, a requerimento do credor, e exclusivamente para o caso de preterimento de seu direito de precedência, o sequestro da quantia necessária à satisfação do débito.” (g.n.)
[4] “Art. 34. A União não intervirá nos Estados nem no Distrito Federal, exceto para: (…) VI – prover a execução de lei federal, ordem ou decisão judicial;”