Exportadores querem levar a STF disputa bilionária da Lei Kandir


A entrevista na íntegra também está no site do Valor Econômico e pode ser acessada aqui.

Com a reforma tributária como pano de fundo, exportadores planejam levar para o Supremo Tribunal Federal (STF) uma disputa para tentar fazer com que os Estados paguem os créditos relativos ao Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) recolhido na cadeia de produção de bens exportados. A ideia é pedir que os governos estaduais usem, “prioritariamente” para esse fim, os R$ 62 bilhões em recursos ligados à desoneração de exportações que a União vem transferindo aos Estados, conforme acordo de 2020.

Advogados que representam os exportadores dizem que o montante é insuficiente para o pagamento total de créditos devidos. Os Estados deverão enfrentar o pedido em meio aos impactos da redução de alíquotas de ICMS imposta no ano passado.

A Associação de Comércio Exterior do Brasil (AEB) deve entrar até a primeira quinzena de maio com uma ação para fazer com que os Estados usem, para ressarcimento do impostos aos exportadores, os recursos transferidos pela União para compensar as perdas de receita com a desoneração total de ICMS das exportações estabelecida desde 1996, pela chamada Lei Kandir, a Lei Complementar 87/96.

Atualmente esses valores de compensação aos governos estaduais são pagos com base em acordo firmado em 2020 entre Estados e União. Por esse acordo, a União deverá repassar total de R$ 62 bilhões aos Estados. Os pagamentos se iniciaram em dezembro de 2020 e vão até 2037.

Mariana Cardoso Martins, sócia da CMartins Advogados, explica que a estratégia é pedir uma liminar em Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF). “A ideia é aproveitar a transferência desses recursos da União para os Estados e solicitar que dentro dessa janela de R$ 62 bilhões os exportadores sejam pagos com prioridade. Nossa ideia é entrar com pedido de liminar para que a vinculação de recursos para pagamento dos créditos aconteça de forma imediata, mesmo que o efetivo ressarcimento dependa do julgamento do mérito da ação.”

O pedido de liminar, explica, deve ser para bloquear recursos vinculados para o pagamento dos créditos. Será preciso, diz ela, criar “uma dinâmica dentro do Tesouro [dos Estados] para que esses recursos não sejam usados para outros fins que não o pagamento do exportador”.

Fernando Facury Scaff, tributarista e sócio do escritório Silveira Athias, defende que há “correlação” entre as transferências da União e o pagamento de crédito aos exportadores. “Uma parte do ressarcimento aos Estados da Lei Kandir tinha por fundamento amparar os créditos que os exportadores possuem [pelo pagamento do ICMS] na cadeia de exportação.” Os recursos, porém, nem sempre estão sendo direcionados a isso, diz Scaff. Há dois anos, aponta, a União tem transferido tudo o que foi combinado, mas parte dos Estados não tem pago os exportadores. “É preciso uma determinação judicial que diga aos Estados para pagar os exportadores.”

Scaff lembra que a história sobre os créditos de ICMS aos exportadores é longa. Em 2003, explica, a Emenda Constitucional (EC) 42 assegurou aos exportadores a manutenção e aproveitamento do crédito de ICMS pago na cadeia de produção dos bens exportados. A mesma emenda determinou a criação de um fundo para compensar Estados pela perda de arrecadação do ICMS. Valores e critérios do fundo seriam estabelecidos por lei complementar.

Com a demora para aprovação de lei complementar, o Estado do Pará foi ao STF, em 2013, com uma Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão (ADO) 25, que ficou sob relatoria do ministro Gilmar Mendes. Após muitas discussões, lembra Scaff, foi homologado o acordo dos R$ 62 bilhões no âmbito do STF. O acordo foi ratificado pela Lei Complementar 176, também de 2020. A estratégia, explica, é levar o assunto novamente ao STF por meio de ação de autoria de associação de âmbito nacional.

José Augusto de Castro, presidente da AEB, diz que os exportadores, apesar da previsão constitucional, têm dificuldade em receber os créditos do ICMS pago na cadeia produtiva. Há demora e os valores a receber se acumulam, diz.

“Isso onera as exportações e afeta o fluxo de caixa dos exportadores, que muitas vezes são obrigados a pegar crédito e pagar juros altos. Sem a devolução do ICMS, o que acontece é a exportação de tributos. Sonhamos que a reforma tributária mude a situação, mas por enquanto isso é um custo para as empresas”, diz Castro.

Mariana, da CMartins, lembra que além de enfrentar burocracia para a devolução do ICMS, o exportador recebe o crédito sem correção monetária e, por isso, o ativo perde valor no decorrer do tempo.

Castro diz que provavelmente o montante devido aos exportadores ultrapassa os R$ 62 bilhões, porque os créditos não pagos se arrastam há muito tempo. Ele destaca que a situação é distinta entre os Estados, com alguns entes que têm maior atraso e outros não.

André Horta, diretor-institucional do Comsefaz, comitê que reúne os secretários estaduais de Fazenda, chama atenção para a situação heterogênea. Há Estados, aponta, que estão em dia na devolução de créditos. Ele também lembra o atual quadro no qual “a recuperação de receitas é a pauta do dia” dos Estados, que ainda contabilizam perdas com a redução de ICMS imposta em 2022, apesar da iniciativa de parte dos entes de elevar a alíquota modal a partir deste ano.

Segundo Mariana, há consciência de que os recursos a serem pagos no âmbito do acordo entre União e Estados não são suficientes para ressarcir todos que precisam receber. A ideia é vincular ao menos parte dos recursos que devem ser pagos pela União aos Estados de 2023 a 2037.

“A partir daí devemos discutir a criação de câmaras de compensação ou outros mecanismos que garantam pagamento desses valores no contexto da reforma tributária”, diz Mariana. “A reforma está chegando e precisamos criar mecanismos dentro das Propostas de Emenda à Constituição (PECs) discutidas e dentro da unificação de impostos.”

Scaff ressalta que a situação dos créditos de impostos que podem ser extintos, como o ICMS, é um dos pontos ainda “obscuros” da reforma. “Discutindo isso [os créditos de ICMS a exportadores] judicialmente também se forma um bloco de pressão para a reforma tributária.” Segundo Mariana, será considerada, na petição inicial da ação da AEB, que a reforma traz potencial impacto na sistemática de recuperação de ICMS porque se espera a unificação dos vários tributos atualmente cobrados sobre consumo. “E por isso precisa-se de prioridade na homologação dos créditos, nos casos em que ainda não houve, e na devolução deles.”