Atualmente vivenciamos situações jurídicas sem qualquer precedente diante de tamanha imprevisibilidade em razão da pandemia decorrente do COVID-19.
Estima-se que cerca de 1,6 bilhão de estudantes em todo o mundo, de mais de 180 países, tiveram sua rotina e grade curricular atingida pela pandemia. Em razão de tal impacto, consequentemente, surgem as mais diversas dúvidas quanto às relações contratuais que têm como partes os estudantes e as instituições de ensino.
Inicialmente, é primordial ter em mente que “boa-fé”, observância da necessidade de transigir, equilíbrio e transparência nas relações são algumas das palavras-chaves que devem ser destacadas nas relações contratuais e consumeristas em tempos de pandemia.
A principal orientação do MEC, que homologou o parecer do Conselho Nacional de Educação em junho de 2020, é que as aulas continuem sendo realizadas de forma não presencial em todas as etapas de ensino, a fim de evitar prejuízo aos alunos e o atraso na formação destes.
É possível identificar a eventual aplicabilidade da Teoria da Imprevisão, tendo em vista a necessidade forçada de revisão contratual ocasionada pelo evento imprevisível que é a pandemia, bem como os impactos financeiros que esta vem gerando não somente nos estudantes e em suas famílias, mas também nas finanças das instituições de ensino. Desta forma, a fim de obstar que o contrato se torne extremamente oneroso para alguma das partes, há de se ter uma revisão contratual justa e equilibrada, com o devido acerto de contas.
Neste diapasão, objetivando não ocasionar um desacertado ajuste de contas, faz-se necessário que ambas as partes ajam com transparência.
Fato é que a ausência de aulas presenciais impactou os gastos fixos das instituições de ensino, podendo ensejar, assim, a redução de custos fixos referentes ao fornecimento de água, energia elétrica, dentre outras. Em contrapartida, há de se observar eventuais gastos para a implementação de aulas remotas, bem como os custos trabalhistas para manutenção do salário dos professores, funcionários e aluguel do espaço físico da instituição.
Desta forma, como cirurgicamente pontuado pelo renomado Desembargador e professor Werson Rêgo na aula inaugural de seu recém lançado curso de Direito do Consumidor, o justo neste momento é o acerto de contas com observância tanto da redução, quanto dos acréscimos de gastos, a fim de que haja o repasse equilibrado de tais despesas, de forma a impedir que o risco da atividade passe a ser suportado por somente uma das partes, tornando, assim, o contrato agudamente oneroso para esta.
Justamente por isso é que o PROCON do Rio de Janeiro, de forma deliberada e voluntariamente, solicitou a algumas instituições de ensino superior de redes particulares uma planilha contendo gastos a fim de analisar a eventual necessidade de repasse.
Além disso, o PROCON/RJ também agiu prontamente diante da inserção de cláusula contratual realizada por instituições de ensino superior e especializado de redes privadas que informaram que não seriam concedidos descontos nos valores das mensalidades tanto por ato normativo quanto por ordem legal, em razão da fragilidade e da instabilidade decorrente da situação de pandemia. Destarte, o PROCON notificou as instituições de ensino para que estas esclarecessem a inclusão da referida cláusula, que diante de tal notificação foi alterada.
Ademais, também no Rio de Janeiro houve o advento da Lei nº 8.864, que previu a redução de 15% a 30% nos valores das mensalidades de ensino da rede privada, assegurando, ainda, a manutenção do pagamento integral aos profissionais de educação.
Todavia, em recente decisão, o desembargador relator Luciano Saboia Rinaldi de Carvalho, apreciando Agravo de Instrumento interposto contra decisão que manteve ativa a possibilidade de o Procon fiscalizar a aplicabilidade da Lei nº 8.864/2020, decidiu que a atuação do órgão configurava violação ao princípio da livre iniciativa, sob a fundamentação de que caberia as partes renegociação dos valores das mensalidades diante das particularidades de cada situação.
A Confederação Nacional dos Estabelecimentos de Ensino (Confenem) ajuizou no Supremo Tribunal Federal uma Ação Direta de Inconstitucionalidade sob o nº 6.448, afirmando que a referida lei acabou por violar a competência privativa da União de legislar sobre Direitos Civis e Trabalhistas. A própria Confenem já havia ajuizado ADI’s referentes às leis que versaram sobre o mesmo tema nos Estados do Maranhão e do Ceará.
As teses das ADI’S ajuizadas, além de sustentarem a violação da competência privativa da União para legislar, afirmaram que leis que versem sobre a redução dos valores das mensalidades estariam violando o princípio da proporcionalidade, tendo em vista que a migração de aulas presenciais para o sistema remoto não implica na suspensão do ensino.
Ainda, o STF também identificou o ajuizamento de duas Arguições de Descumprimento de Preceito Fundamental sob os nº 706 e nº 713 requerendo a suspensão com urgência de todas as decisões judiciais que concederam descontos nas mensalidades das universidades durante a pandemia, sob a fundamentação de que os descontos concedidos podem impactar de forma prejudicial e permanente as instituições de ensino.
As aludidas ADP’s têm como fundamentação a circunstância de que os descontos impostos por liminares tendem a impedir a negociação individual com os estudantes, sendo indicado analisar em apartado cada caso concreto e a necessidade de aplicabilidade de descontos, sustentando que a concessão compulsória e generalizada imposta por força de lei ou de decisão judicial pode acabar beneficiando pessoas que não sofreram impactos financeiros em razão da pandemia, ou que não fazem jus a descontos.
O Deputado André Ceciliano, presidente da ALERJ e um dos autores da referida lei, sustenta que a Lei Estadual nº 8.864 busca justamente assegurar as famílias afetadas financeiramente pela pandemia e garantir que haja a continuidade do pagamento das mensalidades, visando sempre ao equilíbrio da relação contratual.
No Rio de Janeiro foram concedidas liminares aplicando descontos nas mensalidades de instituições de ensino superior e especializado de redes privadas. Em contrapartida, no dia 15/06/2020 a nobre magistrada Regina Chuquer concedeu liminar suspendendo a aplicabilidade da Lei estadual nº 8.864 sob o pretexto de que seria inconstitucional, liminar essa que foi suspensa pelo E. TJRJ poucos dias após.
Também em decisão recente, apreciando a questão objeto da aludida controvérsia, o Exmo. Ministro Dias Toffoli reestabeleceu a liminar concedida pela juíza Regina Chuquer, confirmando que os descontos aplicados nas mensalidades de forma generalizada conflitavam com normas constitucionais.
Faz-se primordial destacar que acima de tudo é necessário haver observância à qualidade do ensino prestado, tendo em vista as diferenças na realização de aulas presenciais e remotas, com o objetivo de suprir as necessidades dos alunos e garantir que o nível do serviço prestado não será rebaixado em razão de tal alteração.
Não obstante a atipicidade e diante da prestação permanente de aulas remotas decorrente do momento vivenciado, há de se atentar que o fato de o ensino acabar por ter sua carga horária reduzida ou passar a ser prestado em qualidade inferior ao contratado em momento anterior à pandemia poderão refletir diretamente na alteração do valor da mensalidade, eis que o serviço prestado estará divergente daquele inicialmente contratado. Assim, deve também ocorrer a análise de instituições que estejam incorrendo na suspensão das aulas, podendo ocorrer até mesmo a solicitação de cancelamento.
À vista de todo exposto e, em decorrência da atipicidade ocasionada pandemia do COVID-19, é indicado que as tentativas de reajustes e negociações entre as partes, estudantes e instituições de ensino, sejam realizadas priorizando o equilíbrio, a proporcionalidade e a harmonia nas relações contratuais, a fim de que seja oportunizado um diálogo transparente e pautado em boa-fé por todos os interessados, de modo que se enxergue o judiciário como meio alternativo e postremo de resolução de conflitos.
Camila Freitas
Advogada
[email protected]